A disputa das feministas pelo poder político como bandeira histórica do 8 de março

*Por Elaine Bezerra

Acabamos de passar por mais um 8 de Março, momento em que saímos às ruas para denunciar as mazelas que o sistema capitalista-patriarcal impõe à vida das mulheres, fortalecendo este como um dia de luta e de solidariedade entre as trabalhadoras de todo o mundo.

Aprendemos com o feminismo socialista de Clara Zetkin e Alexandra Kollotai que o Dia 8 de Março deve ser um momento para fortalecer a auto-organização das mulheres e a construção de unidade política em torno de pautas que enfrentem os reais problemas das trabalhadoras e apresente um projeto de transformação que seja capaz de aglutinar em torno de si também forças progressistas. É um momento de provocar, em torno destas demandas concretas das mulheres, um processo de politização que desenvolverá alicerces e condições para a construção de uma sociedade socialista, nos colocando em diálogo direto com o conjunto da sociedade, contribuindo, assim, com o acúmulo de forças do movimento feminista e nos posicionando melhor na correlação de forças para o enfrentamento do estado capitalista e patriarcal.

Assim, ao contrário da crítica feita à pauta do Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político como algo que “desvia” a luta das mulheres da classe trabalhadora, afirmamos que esta interpretação não se sustenta, uma vez que lutar pelo poder político sempre esteve na pauta das trabalhadoras. Esta segue sendo uma bandeira feminista e socialista porque enfrenta diretamente o caráter patriarcal do Estado capitalista e historicamente tem sido feita nas ruas, com muita organização e mobilização das mulheres. A instituição do Dia Internacional das Mulheres (Woman’s Day) que desde o seu nascedouro teve como principal reivindicação a igualdade política entre mulheres e homens, é prova disso.

Há 104 anos, a palavra de ordem que unificou a 1ª organização do Dia das Mulheres foi: “O direito de voto para as mulheres unificará nossa força na luta pelo socialismo” (KOLLONTAI, 1920). As feministas socialistas tinham a clareza da necessidade de estender o direito ao voto para as mulheres, pois “as milhões de mulheres trabalhadoras na indústria, no comércio, na agricultura não podem prescindir por mais tempo do sufrágio como uma arma para defender seus interesses contra o capital” (ZETKIN, 1906). Em outras palavras, a luta para ampliar a participação política das mulheres e a luta contra o capital são duas faces da mesma moeda. Assim, as socialistas politizavam o debate sobre o sufrágio universal, diferenciando, por um lado, da posição do feminismo burguês que defendia um sufrágio feminino limitado para manter seus privilégios de classe, e por outro das antisufragistas, cujo argumento para não defender o voto para as mulheres repousava no reforço da sua importância na família e no trabalho de filantropia.

Ora, este dado mostra que a luta pelo voto estava diretamente articulada ao questionamento do sistema político burguês.

Resguardados os respectivos contextos históricos, o debate atual da Constituinte Exclusiva para alterar o sistema político brasileiro nos coloca, em certa medida, diante de questões análogas as que foram enfrentadas pelas feministas socialistas no início do século passado: “devemos exigir mais representação das trabalhadoras no parlamento burguês?” Esta, porém, não é uma coincidência feliz, ao contrário, significa que após um século de lutas das mulheres o sistema político continua a serviço de patrões e de machistas.

O modo de produção capitalista-patriarcal conformou num mesmo sistema de dominação-exploração a subjugação dos trabalhadores enquanto classe social e a opressão das mulheres. Este processo ao mesmo tempo em que se apropriou da divisão sexual do trabalho para mais explorar as trabalhadoras, alijou-as dos espaços de poder e de decisão, relegando-as a cidadãs de segunda categoria. Consolidou assim uma ideologia liberal-patriarcal, que sustenta uma separação entre as esferas pública (do parlamento, da produção econômica – identificada como masculina) e privada (da família, do trabalho doméstico – destinada às mulheres). E ainda, fez parecer que uma esfera não possuísse relação alguma com a outra, sedimentando a ideologia de que a política (esfera pública) não é lugar para as mulheres.

Tal modo de produção construiu também seus instrumentos de dominação: estado, igreja, escola, família e cuidou para que em cada um deles estivesse presente a marca da opressão de gênero. Nem as organizações dos trabalhadores ficaram imunes, uma vez que estas partilham dos privilégios do poder patriarcal e reproduzem historicamente, através da consigna: “a centralidade é a luta contra o capital e as questões específicas só dividem a classe”, uma lógica de dominação que só reforça a dicotomia público/privado e o capitalismo opressor. Como se o machismo, o patriarcado não fosse o que divide a classe trabalhadora, impedindo que homens reconheçam suas companheiras de classe como iguais nos espaços de trabalho assalariado e doméstico, de representação política, entre outros.

Por isso, o tema do poder político interessa às trabalhadoras e reforçar sua centralidade fez parte das reivindicações que foram às ruas no Dia 8 de Março. A luta por uma constituinte exclusiva do sistema político é uma oportunidade de pautar, do ponto de vista das mulheres, a repartição do poder na sociedade, de exigir a despatriarcalização do Estado, de denunciar todos os mecanismos que reforçam a divisão sexual do trabalho e da política cristalizadas na sub-representação das mulheres nos espaços de poder da sociedade.

Não podemos também naturalizar o fato de que há apenas 82 anos conquistamos o direito de votar e de tornar-nos elegíveis para cargos de representação política, pois em nosso país, até 1932 ser mulher era sinônimo de ser considerada incapaz de escolher ou de ser uma representação política. Os direitos ao voto e à elegibilidade das mulheres são resultados de lutas de cerca de um século no Brasil e, ainda hoje, a elegibilidade feminina ainda não se constituiu, de fato, nas em nossas vidas.

A política continua uma arena predominantemente masculina e grande parte das mulheres encontra enormes dificuldades de se inserir e expressar nos espaços públicos, em se construir enquanto quadros políticos dentro das organizações (incluídas as de esquerda) e em dividir suas intenções de atuação no âmbito público com suas “obrigações” na esfera privada.

Essa realidade é também compartilhada pelo conjunto das trabalhadoras, para quem a política não se configura como espaço possível e/ou desejável; que não sentem suas demandas acolhidas dentro das suas próprias organizações; que tem sua fala desqualificada quando questionam o padrão masculino de exercício da política. Não é por acaso que um dos principais objetivos das feministas socialistas ao levantar a bandeira do voto feminino era fortalecer a organização das operárias e também trazê-las para os sindicatos e os partidos de esquerda, contribuindo para que elas se constituíssem como sujeitos políticos na luta pela transformação social. Este ainda é um desafio, uma vez que para transformar radicalmente a sociedade é preciso haver não simplesmente “mais mulheres” alcançando cargos de representação, mas sim mais mulheres no poder com clareza da necessidade de enfrentamento ao capitalismo-patriarcado – clareza esta forjada fundamentalmente nos espaços de luta feminista/da classe trabalhadora.

Não se constrói uma representação política mais democrática para as mulheres no Estado se elas são desestimuladas ou alijadas dos espaços que poderiam fortalecê-las para o exercício da política – razão pela qual lutamos contra a atual divisão sexual do trabalho que garante o privilégio masculino nos espaços de direção de sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda, mesmo os com bases majoritariamente femininas, assim como garante o trabalho doméstico gratuito de mulheres para que homens tenham mais tempo para o exercício da política e do trabalho no espaço público de forma geral. Da mesma forma que não se constrói esta representação mais democrática com um sistema político que cria mecanismos de entrave à presença e às lutas das mulheres, razão pela qual defendemos a pauta da Constituinte Exclusiva e Soberana para a Reforma do Sistema Político como um caminho para avançarmos na despatriarcalização do Estado.

08_03_DIA_INTERNACIONAL_DA_MULHERO exemplo pedagógico de Clara Zetkin e Alexandra Kollontai ao afirmar que todo o proletariado deveria levantar o grito: “abaixo com as barreiras legais que privam as mulheres da igualdade de direitos políticos” demonstra que reivindicar todos os direitos de cidadãs às mulheres proletárias é condição sine qua non para que as mesmas possam entrar na luta pela transformação social com as mesmas condições que são concedidas aos homens.

A luta econômica não avançará se não estiver conjugada com a luta pela radicalização da democracia. A junção destes dois movimentos contribui para colocar o povo em outro patamar no enfrentamento com o estado burguês. Nossa luta por mais recursos para saúde, educação, para o enfrentamento à violência sexista, para construção de equipamentos públicos de socialização dos cuidados, pela laicidade do Estado não será vitoriosa enquanto 84% do parlamento estiver nas mãos dos empresários, dos ruralistas e da bancada evangélica.

Mais uma vez, nos inspiremos na experiência do feminismo socialista, que demonstra a maturidade política alcançada pelas trabalhadoras. Segundo Alexandra Kollontai, as mulheres compreenderam que:

(…) não era suficiente quebrar as bancas no mercado ou ameaçar o detestável comerciante: (…) compreenderam que tais ações não abaixariam o custo de vida. É necessário mudar a política do governo. E para conquistar isso, a classe trabalhadora precisa fazer com que a população votante seja ampliada (KOLLONTAI, 1920).

Também, o feminismo mostrou na prática que a plena e igual participação das mulheres na vida pública é impossível sem provocar mudanças na base material que sustenta a opressão. Como as dimensões da produção/reprodução, do público/privado estão intrinsecamente interligadas, a alteração de uma delas tensiona a outra a transformar-se.

Assim, não fazer este debate é afastar-se da experiência histórica do feminismo socialista, é “desviar” as trabalhadoras da luta pelo poder e permitir que os homens continuem reinando absolutos nos espaços públicos de exercício da política.

Referências:

KOLLONTAI, Alexandra. O Dia das Mulheres (1913) e O Dia Internacional das Mulheres (1920). In: As origens e comemoração do dia internacional da mulher, ÁLVAREZ GONZALES, Ana Isabel (org). São Paulo: Expressão Popular & SOF – Sempreviva Organização Feminista, 2010.

Pateman, Carole. Críticas feministas a la dicotomia público/privado. Barcelona: Paidós, 1996.

Zetkin, Clara. O sufrágio feminino. In: As origens e comemoração do dia internacional da mulher, ÁLVAREZ GONZALES, Ana Isabel (org). São Paulo: Expressão Popular & SOF – Sempreviva Organização Feminista, 2010.

*Elaine Bezerra é militante da Marcha Mundial das Mulheres em Campinas/SP

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