Carta aberta sobre o PL 529/20 – Em defesa de uma extensão rural pública e feminista

Por Raquel Rizzi, Flávia Bigai e Débora Barizão*

Alguns assuntos carregam em si uma gravidade tão intensa que fica difícil compreender as várias facetas de seus desdobramentos. Proposto pelo governador do Estado de São Paulo, João Dória, o Projeto de Lei 529 de 2020 é extenso e dá margem para inúmeros questionamentos sobre o alcance do desmonte que ele propõe.

Nesta carta aberta, pretende-se tratar de uma das facetas. A faceta que envolve a produção de alimentos, a preservação de nascentes e da biodiversidade, os quilombos e as terras indígenas.

O governo do Estado tem entre as suas competências oferecer Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) de forma pública, as Casas da Agricultura localizadas em todas as cidades do Estado de São Paulo cumprem há anos a tarefa de acompanhar agricultoras e agricultores, oferecendo essa ATER. São vinculadas à Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI), que sofreu primeiro ataque ao ser renomeada para Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS) no início do governo de João Dória.

O PL 529/20 afeta uma série de políticas públicas que envolvem a extensão rural enquanto um processo social e pedagógico, tornando-a apenas um mero processo burocrático e digitalizado. A partir disso serão extintas 594 casas de agricultura do Estado de São Paulo, além de 24 regionais da CATI, lembrando que apenas 13% das(os) agricultores do estado usam a internet para fins agropecuários.

Em plena pandemia da covid 19 e com mais de 120.000 mortes pelo país, o cenário que se aproxima no Estado de São Paulo no que diz respeito às políticas públicas de extensão rural que envolvem a segurança alimentar e a produção de alimentos saudáveis está cada vez mais caótico.

Para além do desmonte em relação às Casas de Agricultura, este PL prevê a extinção do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), responsável pela regularização fundiária do Estado, por assentamentos e quilombos estaduais e também por ofertar ATER para estes públicos.

Mas, afinal, o que é ATER e por que ela é importante?

Por meio do trabalho de extensão rural, são fornecidos aos agricultores e agricultoras documentos que garantem o reconhecimento de seu trabalho, como a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) e as Notas de Produtor Rural, utilizadas posteriormente para reivindicação de direitos previdenciários. 

A extensão rural não se trata somente de assistência técnica dedicada exclusivamente à produção, mas também de profissionais aptos a incluir a economicamente essas populações deixadas à margem da sociedade. O desenvolvimento do país como um todo depende da inclusão social de todo seu povo, caso contrário, se trata apenas de crescimento de alguns setores em detrimento de outros.

E, por que as mulheres agricultoras serão as mais prejudicadas por esse desmonte?
As mulheres agricultoras são as mais atingidas com os cortes nessas políticas e são as mais atingidas nesse momento de pandemia, já que todo o trabalho de cuidados, incluindo os cuidados com a alimentação de nossas famílias recai sobre elas. O corte nas políticas afeta a autonomia econômica das mulheres e, como temos visto, o número de casos de mulheres em situação de violência doméstica aumentou em 50% durante o isolamento social.

Mas uma das poucas questões faladas diz respeito ao impacto na vida de mulheres agricultoras, que ocupam funções tão pouco valorizadas na sociedade atual. As trabalhadoras rurais conquistaram com muita luta e mobilização o acesso a direitos que por vezes parecem tão básicos para outras mulheres, mas que foram por muito tempo ignorados, como o acesso à saúde, educação, direitos trabalhistas e previdenciários. 

Com a extinção de Casas de Agricultura e do ITESP, o básico, garantindo por meio de muito mobilização e luta, corre o risco de ser perdido.

E, nós, mulheres trabalhadoras da política de agricultura?
Ser uma mulher extensionista e atender o público feminino é compreender que as impossibilidades se demonstram nos detalhes, nos filhos que impedem as produtoras de irem à reuniões, dos cuidados diários com casa, familiares e amigos que muitas vezes são preocupações exclusivamente femininas, da violência de gênero tão socialmente naturalizada, e juntas pensarmos em formas de tornarmos nosso espaço mais inclusivo e, quem sabe, a sociedade como um todo. Sem inclusão das mulheres nesse processo não há transformação social.

O desmonte na extensão rural traz consigo uma destruição de muita história que vem sendo escrita por muitas vozes e que não pretende se finalizar.

Além disso, as trabalhadoras e trabalhadores da secretaria de agricultura e abastecimento vem passando por um processo de ausência de comunicação acerca dessa reestruturação. Acreditamos que isso configura assédio moral, muitos se encontram inclusive com crises de depressão e ansiedade. Outro fator são os tantos cargos em comissão, cuja função é aparelhar ainda mais o Estado para levar adiante as políticas ultraliberais desse desgoverno do Estado de São Paulo.

Que possamos unir forças entre as organizações que lutam pela extensão rural e entre as organizações de agricultoras e agricultores paulistas, que se fazem presentes na resistência ao retrocesso em políticas públicas essenciais para a produção de alimentos diversificados e que levem em consideração a soberania alimentar. Reivindicamos parcerias público-comunitárias em contraposição às parcerias público-privadas que só visam o lucro e a manutenção do agronegócio competitivo em detrimento da agricultura familiar.

*Raquel Rizzi e Flávia Bigai são militantes da Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo. Débora Barizão integra a AFITESP/APAER.

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