Política de segurança no Rio de Janeiro: mulheres disputando discursos e espaços

Por: Thandara Santos*

Ao longo das últimas décadas, a cidade do Rio de Janeiro foi recorrentemente colocada sob os holofotes da imprensa mundial por conta de seus elevados índices de violência letal. A cidade ficou mundialmente conhecida, ao longo dos anos 80 e 90, por apresentar taxas de homicídio da ordem de 80 vítimas por 100.000 habitantes, usualmente registradas em contextos de guerras. Além dos alarmantes indicadores de violência letal, a cidade representava um desafio para a formulação de políticas de segurança pública também por conta da especificidade de estruturação do narcotráfico, a partir do controle ostensivo do território das favelas por grupos criminosos armados.

Nesse contexto, a disputa pelo território das favelas entre facções criminosas e entre polícia e criminosos vitimou, ao longo dos anos, milhares de pessoas, e introduziu, progressivamente, armas de elevado poder de destruição nestes territórios e em outras áreas da cidade. A imagem de grupos armados com fuzis controlando as favelas tornou-se corriqueira e chegou até a beira da praia. Nesse momento, a intervenção do estado nas favelas estava pautada por um modelo altamente militarizado, que contemplava invasões periódicas dos territórios e se traduzia em índices de letalidade policial sem precedentes, mas que não lograva desarticular as estruturas criminosas e seu domínio sobre os territórios.

No ano de 2009, o governo do Rio, finalmente, reconhece sua incapacidade de lidar com o avanço da militarização destes territórios a partir de seus tradicionais modelos de atuação e lança a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), a partir da experiência piloto no morro de Santa Marta, em Botafogo. Trata-se de um novo modelo de atuação policial em que os policiais, ao invés de invadirem periodicamente, ficam dentro da comunidade, com a intenção de retomar o controle do território e evitar os confrontos armados. Aproximando-se da lógica do policiamento comunitário ou de proximidade, em oposição à lógica do policiamento ostensivo como pilar da atuação policial, a nova política de segurança promovia, no momento de seu lançamento, o uso de armas não-letais, o respeito aos direitos humanos e a aproximação com a comunidade como forma de construir relações de confiança entre a instituição policial e os moradores, entre outros parâmetros.

O novo modelo de segurança foi divulgado mundialmente como a solução para a violência no Rio de Janeiro e como modelo a ser seguido por outras grandes metrópoles que convivem com a violência urbana. Em um olhar mais atento, no entanto, não foram poucos os relatos noticiados sobre abusos de autoridade e sobre a atuação truculenta de alguns policiais dentro das comunidades que receberam as UPPs (tais como: no Cantagalo, na Fazendinha, na Tijuca, no Pavão Pavãozinho Cantagalo e na comunidade de Nova Brasília), indicando que a filosofia do policiamento de proximidade pautada pelo respeito aos Direitos Humanos ainda não está tão consolidada dentro da corporação policial como a propaganda para a Copa do Mundo de 2014 quer nos fazer acreditar.

Na semana passada, a Polícia Militar do RJ deu mais uma prova de seu recrudescimento e retrocesso, fechando suas portas às mulheres no próximo concurso para soldado. O concurso, que a partir de janeiro selecionará 6 mil novos soldados para atuar no estado, não receberá a inscrição de mulheres, pois, segundo o chefe do Centro de Recrutamentos e Seleção de Praças da PM, tenente-coronel Roberto Vianna, “a carga de equipamento que cada soldado transporta no treinamento e no dia a dia inviabilizaria a participação de mulheres”).

Fonte: Jornal O Dia.

Vale um esclarecimento: quando o tenente-coronel fala sobre os tais “equipamentos” necessários à atividade policial e que seriam pesados demais para as mulheres, esse senhor está se referindo, fundamentalmente, aos 5kg do fuzil, mais cerca de 3,5kg do colete à prova de balas, 1,6kg da pistola calibre 40, além do peso das botas e da farda. A alegação do tenente-coronel Vianna, portanto, restringe a atuação policial à atividade física, como se a Polícia só pudesse atuar em policiamento ostensivo, nas ruas, carregando os pesados aportes de armas, munições e outros “equipamentos”, desprezando toda a ampla gama de atividades de monitoramento, planejamento estratégico, mediação de conflitos, entre outras, tão (ou ainda mais) necessárias à corporação quanto o simples ato de carregar armamento nas rondas ostensivas. E, principalmente, ao restringir a atuação policial dessa forma, a corporação está desprezando a filosofia propagandeada aos quatro ventos pelo governo estadual como a solução para a segurança pública, pautada pela lógica da substituição progressiva do uso de armamentos letais (e “pesados”) pelo uso de armas não-letais e, no limite, pela mediação desarmada de conflitos.

Fechar as portas da Polícia Militar do RJ às mulheres é dar um sinal muito claro de que a filosofia desta corporação não mudou desde os períodos mais sombrios de sua história, apesar da maquiagem do policiamento de proximidade, vendida para o mundo para financiar nossa Copa do Mundo.

Foto de divulgação: Palácio Guanabara.

Para além do impacto desta restrição à participação das mulheres e do discurso que a fundamenta na estruturação do sistema de segurança pública no estado do Rio de Janeiro, o tenente-coronel esquece também que “carga” nenhuma é pesada demais para aquelas que, apesar de no último concurso para a PM do Rio de Janeiro terem figurado em 6 das 10 primeiras posições nos resultados finais (que somam as notas obtidas nas avaliações físicas e escritas), ainda assim têm que provar seu valor e provar que são capazes de exercer a função para a qual concorreram.

“Carga” nenhuma é pesada demais para aquelas que têm que atender diariamente ocorrências de violência doméstica e voltarem pra casa e se calarem diante da violência que sofrem em seus próprios lares. “Carga” nenhuma pode ser pesada demais para aquelas que têm que conviver com o preconceito velado e (muitas vezes) manifesto de seus companheiros de farda; que têm que conviver com o desrespeito dentro e fora da corporação. “Carga” nenhuma é pesada para essas mulheres que são treinadas a puxar o gatilho contra os filhos daquelas outras mulheres negras, trabalhadoras e igualmente oprimidas. “Carga” nenhuma é pesada demais pra essas mulheres, a não ser o peso que ser mulher tem em suas vidas.

* Thandara Santos é cientista social, pesquisadora do campo da Segurança Pùblica e militante da Marcha Mundial das Mulheres – São Paulo.

Comments

  1. Tem uma linha condutora do texto que eu não compreendi, haver mais mulheres dentro do serviço militar modificaria (polícia e exército) modificaria o papel que este setor social cumpre?

  2. Oi Luka. Primeiramente, é preciso distinguir polícia militar de “serviço militar”, que se relaciona ao Exército. A polícia militar é uma instituição subordinada aos governos estaduais, com mandatos específicos de preservação da ordem pública dentro do estado, exclusivamente. O Exército é subordinado ao governo federal, com mandato sobre a preservação das fronteiras e a defesa nacional. Pra além dessa distinção, se eu dei a entender no texto que o simples fato de ter mulheres dentro da polícia militar do RJ poderia alterar o “papel que este setor cumpre”, então me expressei mal, porque esse não é meu argumento. Ter mulheres na PM do RJ não muda o espaço que essa instituição ocupa dentro da política estadual e nem muda o seu modo de atuação, que sabemos ser pautado pelo uso da força e, em alguns momentos, pela desconfiança da população por conta de relatos de abusos. Para alterar o que você está chamando de “papel que este setor cumpre”, serão precisar mudanças muito mais estruturais, que passam pela revisão dos conteúdos da formação policial, passa por um debate sobre a transparência dos dados e o controle social da atividade policial, passa pela discussão sobre a lógica mesmo do policiamento de proximidade e seus parâmetros de implementação em um estado como o RJ, etc etc. Por outro lado, o contrário é verdade, pois não aceitar mulheres na PM do RJ SOB O ARGUMENTO de que elas não estariam aptas às atividades físicas necessárias ao exercício da função, é sim afirmar que esta é uma instituição que está sendo pautada, fundamentalmente, por um tipo de atividade muito específico dentro do rol de atividades que compõe seu mandato, a saber: a atividade de policiamento ostensivo com o uso de armas “pesadas” (no sentido literal e figurado).

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