Prostituição, reconhecimento e outras coisas

Por: Rafaela Rodrigues*

A questão da prostituição é um dos pontos mais polêmicos entre feministas e estudiosas do tema. Esse debate encontra-se em um campo muito delicado, porém, a visão da prostituição como trabalho legítimo e expressão da escolha da mulher vem se tornando dominante.

Marcha das Vadias em Belo Horizonte (MG).  Foto: Fora do Eixo Minas.

No Brasil, a prostituição ainda causa grandes debates, que provavelmente não diminuirão, em virtude do país ser sede de grande eventos esportivos, como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, acontecimentos que contribuem para o aumento expressivo da prostituição.

No Poder Legislativo, o debate ainda está longe de se encerrar. Há anos, movimentos representantes das prostitutas tentam colocar em votação no plenário Projetos de Leis que visam a regulamentação da prática da prostituição. Atualmente, no Congresso Federal, há dois projetos de leis em andamento para regulamentar a prostituição.

O projeto de lei mais recente proposto no Congresso Federal é o PL 4211/2012, de autoria do Deputado Jean Willys, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresentado no dia 12 de julho de 2012. O projeto visa à regulamentação da prostituição e traz a diferenciação entre prostituição e exploração sexual, sendo considerada exploração sexual: a apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro; o não pagamento pelo serviço sexual contratado; e a ação de forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência.

O PL não criminaliza a figura do cafetão, uma das principais reivindicações das prostitutas, visto que prevê a possibilidade de exploração do serviço sexual em até 50%. Todavia, tratar a exploração da prostituição colocando no centro da exploração a figura do cafetão é simplificar o problema e esconder por detrás uma indústria do sexo que circula bilhões de dólares ao ano, e que incluem, além da prostituição, a pornografia, o tráfico humano e a exploração infantil. O PL 4211/2012 não traz grandes mudanças aos projetos antigos analisados e arquivados. Resta saber, caso seja aprovado, se provocará grandes mudanças na vida das prostitutas.

Os números da prostituição no mundo assustam: 40 milhões de pessoas se prostituem, 75% são mulheres com idades entre 13 e 25 anos, 90% dos 40 milhões são ligadas a cafetões. Os dados do Disque Denúncia 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) referentes ao período de janeiro a fevereiro de 2011 demonstram que o sexo feminino corresponde à maioria das vítimas, nas mais variadas formas de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes: são 80% das vítimas de exploração sexual, 67% de tráfico de crianças e adolescentes, 77% de abuso sexual e 69% de pornografia.

A legislação hoje não prevê nenhum direito à mulher prostituta, negando a ela direitos civis e trabalhistas, como aposentadoria, recolhimento de INSS e declaração de profissão no imposto de renda. Por esse ponto de vista, é possível entender a afirmação de que a prostituição nega às mulheres qualquer humanidade, não importa como humanidade seja definida.

No Brasil, a prostituição nunca foi um ato crime. Criminalizar a prostituição é tornar a mulher culpada por sua própria opressão. Leis que criminalizam a prostituição colaboram para a desigualdade de gênero. Quando a opressão legal é posta acima da opressão social, a subordinação das mulheres é legalmente ratificada, e as mulheres imergem em uma profunda inferioridade civil.

A prostituição é vista por uma parte das feministas como uma das principais formas de opressão das mulheres, através da manutenção da supremacia masculina, em virtude dessa atividade ser mantida, geralmente, por meios de coerção física e psíquica que perpetuam a dominação masculina através da exploração sexual de outros – a maioria mulheres, mas também crianças, adolescentes, e homens com orientações sexuais diferentes da dominante, independente do sexo.

Devemos questionar também a máxima liberal de autonomia individual, pois o capitalismo forja a subjetividade, ao transformar (e valorar) todas as relações em mercadorias. Portanto, tornar o próprio corpo uma mercadoria de troca e venda é consequência do sistema, e a possibilidade de proporcionar prazer às pessoas transformando-se em uma mercadoria/objeto se torna uma fantasia poderosa para o mercado sexual.

Charge de Carlos Latuff.

Outro ponto importante é a invisibilidade da coerção da mulher que adentra a prostituição, pois, na verdade, isso não importa para o mercado, já que, para a estrutura patriarcal, a prostituição é considerada sexo, e sexo é o que a mulher é. Portanto, por detrás da ideia de “free choice” (“livre escolha”), há um padrão de sexualidade existente e resistente na sociedade. É essa  sexualidade feminina, base da subordinação da mulher, a qual está disponível para todos os homens, que tem como consequência não somente a prostituição, mas a pornografia, o assédio sexual e o estupro.

A escolha das mulheres para o ingresso na prostituição ocorre por diversos motivos que geralmente não são a afirmação de autonomia sobre seu próprio corpo, como, por exemplo, a necessidade financeira, a baixa qualificação, a oferta de empregos de remuneração baixa, além de um grande número delas ser vítima do tráfico humano. O relatório Tráfico de Pessoas para a Europa para fins de Exploração Sexual, divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), em 2010, revelou que na Europa existem cerca de 140 mil mulheres vítimas do tráfico humano, as quais servem àqueles que procuram o mercado da exploração sexual. Por ano, também são feitas 70 mil novas vítimas da indústria do sexo para exploração sexual.

Há um abismo entre a regulamentação da prostituição e a garantia de direitos civis, trabalhistas, humanos para as prostitutas. De fato, a prostituição nega às mulheres todos os direitos, deixando-as invisíveis na sociedade. A invisibilidade das mulheres, construída durante séculos através do patriarcado, é o principal problema do reconhecimento das mulheres. O não-reconhecimento significa ser considerada invisível pelas práticas representacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura; e ser desrespeitada; e ser difamada habitualmente em representações públicas estereotipadas culturais e/ou em interações quotidianas, e esse é ainda um grande obstáculo na vida das mulheres.

A prostituição é uma instituição que silencia a mulher através da brutalidade e do terrorismo, degradando-a a ponto de que ela seja impedida de falar e ser ouvida, em virtude da sua condição de prostituta. Esse padrão institucionalizado de valor cultural estabelece as prostitutas como não-atores sociais, não-membros integrais da sociedade, e as impede de participar como iguais na sociedade. A regulamentação da prostituição é tida como algo fundamental para mudança da vida das mulheres prostitutas. Pegamos como exemplo o PL 4211/2012, que reconhece a profissão da prostituição como outra qualquer. Ou seja, retira da invisibilidade a profissão e dá voz às mulheres que vivem no mundo da prostituição, dá direitos a elas para, por exemplo, ter acesso ao judiciário em busca de pagamento de prestação de serviço, contribuição para aposentadoria, etc.

A regulamentação incentiva a identidade de grupo, realoca as prostitutas como profissionais de um mundo patriarcal. Porém, não se propõe a questionar a causa da prostituição, o padrão de sexualidade imposto às mulheres, sejam prostitutas ou não, não questiona a valorização da profissão ou a divisão sexual do trabalho. Portanto, não há libertação das prostitutas se não houver libertação das mulheres. A garantia efetiva de direitos para as prostitutas transcende a regulamentação, é necessário questionarmos a opressão das mulheres. É preciso ampliar o debate sobre o sexismo e a subordinação sexual que existem em todas as instituições.

Enquanto as mulheres forem vistas como sexo, enquanto a violência contra as mulheres for tolerada, e enquanto houver divisão sexual do trabalho, a prostituição será uma profissão violenta, desprezada e não reconhecida.

*Rafaela Rodrigues é mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Puc-Rio e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Comments

  1. Adorei! obrigada pelo post… Soh senti falta de um debate sobre o modelo Nordico que estah sendo adotado tambem na Franca e na Corea que criminaliza quem se beneficia da opressao da mulher, incluindo cafetao e os homens que compram sexo… Talvez num proximo post…

  2. Parabéns pelo post, ainda q seja um das que lamente muito por essa necessidade, sou totalmente a favor da legalização, pois, seu reconhecimento trará as medidas necessárias para que tais profissionais sejam reconhecidas como cidadãs e possam interagir socialmente com mais dignidade.

Deixe um comentário

SEGUIREMOS EM MARCHA ATÉ QUE TODAS SEJAMOS LIVRES!