
Por Lilian Roizman*
No dia 30 de janeiro, o presidente Lula declarou que o destravamento das negociações relativas ao Acordo de Livre Comércio entre União Europeia e Mercosul é uma de suas prioridades na política externa e que faria com que o acordo fosse fechado com as devidas alterações até o meio do ano. A implementação de tal acordo, na visão dos movimentos sociais que compõem a Frente Brasileira Contra os Acordos de Livre Comércio Mercosul-UE/EFTA, significaria o aprofundamento das relações coloniais e de um projeto de país baseado na exportação de nossa natureza. Isso implicaria, por exemplo, na desindustrialização e fechamento de postos de trabalho, na aceleração do desmatamento e mineração agressiva, na generalização do uso de agrotóxicos, no desmonte de políticas públicas e na alienação de nossos bens comuns. Isso impacta, principalmente, a vida das mulheres, que são a linha de frente na produção e na reprodução da vida – seja nas cidades, nas roças ou nas florestas.
Em 2020, diante dos riscos que a ratificação desse tratado desencadearia sobre os nossos territórios, povos e trabalhadores, e também sobre a vida das mulheres, mais de 200 movimentos sociais – a Marcha Mundial das Mulheres incluída – organizaram-se na Frente Brasileira Contra os Acordos UE-Mercosul e EFTA-Mercosul, articulando-se politicamente para desacelerar as negociações e exigir que sejam feitas de maneira democrática e transparente. A Frente esteve reunida em um seminário internacional nos dias 6 e 7 de fevereiro, em Brasília, contando com a presença de movimentos, parlamentares e diplomatas.
Neste texto, gostaríamos de falar um pouco sobre o evento, resgatar um pouco da memória de luta contra o livre comércio e abordar os principais aspectos pelos quais esse acordo poderá afetar a soberania popular e a vida, especificamente a das mulheres e das populações tradicionais.
RESGATANDO MEMÓRIAS: A MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES NA LUTA CONTRA A ALCA
A luta dos movimentos sociais latino-americanos contra o livre comércio possui décadas de história, tendo despontado na década de 1990: nessa época, auge da expansão do neoliberalismo, era criada a Organização Mundial do Comércio (OMC) e proposta uma série de Tratados de Livre Comércio (TLCs). Entre eles, estava em jogo a criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), proposta em 1994, que tinha como objetivo unir os mercados de 34 países do continente americano, excluindo os instrumentos comerciais e tarifários entre si.
Em resposta às negociações, a sociedade civil organizou-se na Aliança Social Continental (ASC) e os movimentos sociais passaram a organizar as Cúpulas dos Povos para debater agendas e estratégias comuns de resistência. Nossa visão era que esta globalização assimétrica, materializada na expansão neoliberal e em políticas, nacionais e internacionais, liberais, demandava respostas urgentes das organizações populares. Fazíamos um balanço crítico não apenas sobre o impacto das condições de vida digna das populações que esta nova ordem trazia, mas também discutíamos a reprodução de uma lógica assimétrica entre o Norte e o Sul globais e a repactuação de uma ordem colonial que só traz mais desigualdades. No Fórum Social Mundial de 2002, foi lançada a Campanha Continental contra a ALCA, que consistia em uma enorme mobilização coletiva de informação e formação sobre a proposta da ALCA – uma vez que esse debate não chegava para a maior parte da sociedade – e, em seguida, a organização de um plebiscito popular. No Brasil, o plebiscito obteve mais de 10 milhões de votos, que expressavam um contundente “não!” por parte da população.
Nesses processos, houve participação ativa de movimentos de mulheres, que buscavam analisar os impactos do acordo pela ótica de gênero. Alguns dos grupos acreditavam que a ALCA seria formada inevitavelmente, e tentavam buscar formas de neutralizar os aspectos negativos e aumentar os positivos, introduzindo termos de gênero nas cláusulas sociais. Por outro lado, movimentos como a Marcha Mundial das Mulheres adotaram uma visão crítica ao neoliberalismo e ao livre comércio como processos de mercantilização da vida e do corpo das mulheres, negando o acordo como um todo, desde seus princípios.
O ACORDO DE LIVRE COMÉRCIO ENTRE UNIÃO EUROPEIA E MERCOSUL
Os movimentos populares no Brasil e na América Latina foram vitoriosos na jornada de lutas contra a ALCA: conseguimos barrar o acordo e aprofundamos a integração entre os povos e governos latino-americanos. No entanto, logo a ordem neoliberal apresentaria novos desafios. É o caso do Acordo Mercosul-União Europeia e EFTA, que, apesar de estarem sendo negociados há décadas, ganham força justamente em um cenário de ampliação da desdemocratização e do neoliberalismo autoritário, materializado, entre outros, no governo de Bolsonaro.
Até agora, o conteúdo do Acordo mantém praticamente os mesmos aspectos da ALCA, e foi concebido no mesmo contexto da década de 90. Após 20 anos de conturbadas negociações, em um contexto que sucedeu o Golpe de 2016 e a presidência de Bolsonaro, as discussões se aceleraram e o acordo foi fechado em 2019. Nos anos que se seguiram, movimentos organizados tanto da Europa quanto da América do Sul vêm construindo lutas territoriais e nacionais contra o livre-comércio. No entanto, ainda não conseguimos barrá-los completamente.
O Acordo faz parte de uma nova geração de criação de zonas comerciais: além dos termos de redução mútua de tarifas, também abrangem temas como compras governamentais, propriedade intelectual, marcos regulatórios, etc. Isso significa que, caso aprovado, seria formada a maior zona de livre comércio do mundo, englobando os 27 países da União Europeia e os quatro países que formam o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai).
Falta total de transparência
Nesses 20 anos de negociação, todas as discussões sobre os termos foram feitas completamente a portas-fechadas, sem qualquer tipo de participação da sociedade civil ou observadores internacionais. O texto do acordo foi publicado apenas em junho de 2019, e exclusivamente em inglês, o que significa que seu conteúdo permanece desconhecido pela população, uma vez que não foi até agora traduzido. Os espaços de decisão são feitos apenas por membros de governo e muitas vezes com lobistas de grandes empresas e grupos financeiros. A postura do governo e do Itamaraty em tentar acelerar as negociações dá a entender que uma discussão transparente e democrática sobre os termos do Acordo jamais permitiria sua aprovação, uma vez que ele só beneficia alguns grupos poderosos. Os assuntos da política externa têm efeitos internos sobre a população, e isso nos interessa!
Aprofundamento do neocolonialismo
A eliminação de instrumentos de política comercial, como tarifas e subsídios para determinados produtos, acaba por estimular a inserção dos países do Mercosul enquanto meros exportadores de natureza, ou seja, commodities agrícolas, minerais e energéticas. Ao mesmo tempo, fica mais barato para nós comprar da Europa os bens industrializados, de alta tecnologia e maior valor agregado: isso acaba desestimulando o desenvolvimento da nossa indústria doméstica, pois temos que competir com grandes empresas. Ou seja, o Acordo representa um pacto colonial que mantém as relações de dependência da divisão internacional do trabalho.
Fortalecimento do agronegócio e devastação ambiental
Para os países do Mercosul, a redução das tarifas de exportação para bens agrícolas significa um aumento da produção para exportação por parte do agronegócio e da mineração. A produção da agropecuária e da mineração são, no Brasil, as maiores responsáveis pelo impacto ambiental, causando desmatamento, queimadas, contaminação de afluentes, rompimento de barragens, entre outros. O Acordo beneficiará os negócios exportadores, intensificando a produção de larga escala e a concentração agrária no Brasil. Isso vai na contramão de um modelo de desenvolvimento pautado pelo fortalecimento da demanda interna, democratização da terra e ampliação de possibilidades econômicas para pequenos produtores e comunidades tradicionais.
O Acordo possui um capítulo sobre “comércio e desenvolvimento sustantável”, em que seriam apresentados mecanismos de redução dos impactos socioambientais negativos. Existem cláusulas que exigem que os países signatários do Acordo cumpram com as condições de acordos climáticos e de proteção da biodiversidade (como o Acordo de Paris e demais acordos da ONU), que já são considerados insuficientes. Ainda assim, essas cláusulas não são vinculantes, ou seja, não preveem nenhuma consequência para os países que desrespeitarem seus compromissos climáticos. Nesse sentido, é possível dizer que essas cláusulas existem simbolicamente, mas na prática não são efetivas.
Desindustrialização e desemprego
Ao abrir mão de nossos instrumentos protecionistas, colocamos nossa frágil indústria nacional para competir com as grandes empresas europeias, que são mais competitivas: isso fará com que o processo de desindustrialização (que ocorre desde a década de 1990) se intensifique de forma brutal. Isso levará a ondas de falência de estabelecimentos e, consequentemente, de demissões em massa. Como sempre, quem paga o maior preço pelo desemprego são as mulheres, que se veem forçadas a buscar formas alternativas de fonte de renda em trabalhos informais e sub-remunerados, acumulando jornadas de emprego e se responsabilizando pelo trabalho doméstico e de cuidados. Enquanto o agronegócio se beneficiaria do acordo com suas exportações, os ganhos não seriam repassados para a população, uma vez que o setor agrícola gera poucos empregos em comparação com a indústria.
Fragilização de políticas públicas
O Acordo possui um capítulo dedicado às compras governamentais, em que estabelece que as empresas nacionais — sejam elas médias ou pequenas — devem competir com empresas multinacionais europeias toda vez que o governo abrir uma concessão ou licitação. Além disso, isto certamente limita as compras públicas dos países do Mercosul, fortalecendo uma lógica liberal de diminuição do Estado. Entendemos que isso dificultará gravemente a capacidade governamental de fomentar emprego e desenvolvimento a nível local, por meio de políticas públicas. Entre os programas afetados, estarão o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que criam demanda por alimentos produzidos localmente por pequenos agricultores e agricultoras, muitos deles agroecológicos. Em um contexto em que a fome volta a assolar o país, é necessário reconhecer que programas como estes são extremamente estratégicos para levar a comida ao prato da população, ao mesmo tempo que fortalece a agricultura familiar e camponesa e a autonomia local.
Aumento do consumo de agrotóxicos
Enquanto políticas de fortalecimento da agricultura em pequena escala são desmontados, o Acordo reforçará o modelo de produção agrícola de grande escala, que depende do uso intensivo de agrotóxicos e de biotecnologias estrangeiras. O consumo de agrotóxicos irá afetar a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, mas também a saúde de toda a população através do consumo de alimentos. É importante dizer que, dentre as centenas de agrotóxicos aprovados no governo de Bolsonaro, grande parte é proibida pela própria União Europeia. Assim, o Acordo seria uma forma de externalizar o ônus do uso dessas substâncias na produção para os países do Sul, enquanto a população europeia também sofre com seu impacto no consumo. Novamente, o impacto na saúde da população recai sobre os ombros das mulheres, que são responsabilizadas pelos cuidados. O uso dos agrotóxicos, sementes transgênicas e outras formas de biotecnologia reforçam a dependência de empresas estrangeiras e representam forte ameaça à soberania alimentar.
Um acordo para multinacionais, bancos e entes financeiros
A União Europeia é a maior propulsora de tratados de livre comércio do mundo, como estratégia de tornar as multinacionais mais competitivas frente à ascensão da economia chinesa. Entre as cláusulas do Acordo, estão as proibições de regulamentação serviços financeiros, regulação de fluxo de dados pessoais e tributação lucros internos. Assim, além de criar as condições para empresas europeias entrarem em serviços públicos de comunicação e bancários, favorecem o poder indiscriminado de empresas de tecnologia e Big Data. O desmonte das políticas públicas e a falta de regulamentação sobre a atuação dessas empresas em serviços essenciais para a população fere a soberania nacional e beneficia as transnacionais.
Povos e territórios em risco
Em nenhum momento é feita menção ao artigo 169 da OIT, que garante o direito à consulta prévia e informada aos povos. A intensificação de atividades minerárias e agropecuárias por empresas transnacionais trará consigo o aumento da violência contra populações tradicionais e mulheres e de conflitos territoriais. As disposições sobre direitos humanos no tratado não são vinculantes, o que significa que nada garante que serão cumpridas. Por outro lado, não estão sendo ratificados tratados que apresentam mecanismos vinculantes, como o Tratado de Escazú, que propõe a regulamentação de empresas transnacionais que ferem direitos humanos e coletivos.
“AS MULHERES DIZEM NÃO À TIRANIA DO LIVRE-MERCADO”
Essa frase foi uma das palavras de ordem entoadas pelas mulheres na antiga luta contra a ALCA, há 30 anos atrás. Diante da atual conjuntura, vemos que os velhos problemas sempre voltam, disfarçados sob novas formas: é preciso resgatar na memória nossas antigas vitórias para seguir na resistência.
Hoje, assim como lá atrás, discutia-se se os tratados de livre comércio poderiam ser “corrigidos” com novos artigos e mecanismos que incorporassem um olhar mais cuidadoso sobre a natureza e os direitos humanos. Nós da Marcha Mundial das Mulheres acreditamos que o livre comércio representa uma ameaça à soberania dos povos por conta de seus princípios, e portanto os acordos devem ser rechaçados por inteiro. Isso porque os acordos preveem, basicamente, condições iguais de economia entre países profundamente desiguais entre si. Tarifas de exportação, compras públicas, regulamentações e taxação de renda são, no final do dia, instrumentos de políticas públicas que permitem que possamos fortalecer nossa própria economia, enquanto países do Sul.
*Lilian Roizman é economista e militante da Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo. O texto teve contribuições de Bruna Camilo Silva e Marília Closs.
Deixe uma Resposta