A condição da mulher negra no Brasil

Por Juliana Mittelbach*

Debater feminismo negro no Brasil não é somente elencar estatísticas que apontam que as mulheres negras sofrem maior impacto do que as não negras nas vulnerabilidades socioeconômicas e dados de violências. Não é somente tratar de invisibilidade, silenciamento e ausência nos espaços de poder. Esta é a realidade imediata. É preciso, porém, ter a compreensão histórica de como o imbricamento dos sistemas estruturais de opressão atingiram de forma particular as mulheres negras brasileiras e como isso reflete em sua singularidade.

Não irei tratar aqui dos percentuais das desigualdades que atingem as mulheres negras. Quero aqui apresentar o desenho do movimento histórico que pintou cor e gênero nessas estatísticas.

A abolição da escravatura em 1888 no Brasil, apesar de ter garantido a liberdade da população negra, não assegurou seus direitos. Essa privação da cidadania plena fez com que a população negra não tivesse ganhos materiais ou simbólicos nessa nova condição. Uma exclusão silenciosa.

Não houve segregação dos direitos civis a partir da cor da pele na constituição brasileira como houve nos Estados Unidos e África do Sul, com os marcos legais separatistas chamados, respectivamente, Jiw Crow[1] e Apartheid.[2] E por incrível que pareça este argumento, da ausência de lei que validasse a prática discriminatória, foi utilizado pelo atual vice-presidente (me recuso a citar nome de racistas)  para defender a tese de que no Brasil não existe racismo. Criou-se no imaginário coletivo a ideia de que a abolição, sem a instituição de uma lei que mantivesse legalmente o racismo, findou de forma pacífica as diferenças raciais.

A criminalização da cultura, da religiosidade, e até mesmo do ir e vir, com a lei de vadiagem, encarcerou desde esse tempo o povo negro. Aceitou-se então que a população negra tem tendência a ser bandida e não que quem faz as leis tem a tendência a ser racista.

O projeto de branqueamento através da miscigenação trouxe a ideia de que clarear a prole seria benéfico tanto para as novas gerações que viriam cada vez mais brancas, como também para o país que seria visto como avançado por se aproximar fenotipicamente ao povo europeu. Neste momento tivemos o aumento do encarceramento e extermínio dos jovens negros para que não pudessem procriar.

Para as mulheres negras, a política de branqueamento se realizou através do estupro de seus corpos romantizados por homens brancos. A justificativa utilizada para a violência com a população negra, neste período do país, se deu pela consolidação do estereótipo dos homens negros serem naturalmente violentos e com tendência a criminalidade e das mulheres negras serem hiperssexualizadas, por trazerem em sua pele a cor do pecado que instiga nos homens brancos seus desejos primitivos e os fazem perder o controle de sua libido.

Anos de miscigenação forçada estabeleceram o colorismo brasileiro e a falsa tese de que no Brasil não importa a cor da pele, de que somos todos misturados e vivemos em uma democracia racial[3] em o que gera discriminação, de fato, é a pobreza e não o racismo.

A construção do mito da democracia racial fez com que grande parte do povo brasileiro defendesse que políticas públicas afirmativas para elevar socioeconomicamente a população negra é na verdade um retrocesso para a igualdade que foi alcançada lá na abolição. Que isso seria o mesmo que formalizar que o povo negro não tem capacidade para conseguir melhorar sua condição de vida pelos seus próprios méritos e que precisam de uma ajudinha do governo. Que cotas para negros é uma ofensa, e o correto seria defender que negros e brancos têm iguais condições cognitivas para disputar em igualdade qualquer posição. Essa linha de pensamento meritocrática, cruelmente construída, dificulta muito o combate ao racismo e a promoção da igualdade.

Tratando-se da realidade da mulher negra brasileira, a conexão entre negritude, sexismo e o debate de classe denuncia a desigual realidade que se destina às mulheres negras. Lélia Gonzales afirma que “ser negra e mulher no Brasil, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”.

Na pirâmide social, as mulheres negras ocupam historicamente as piores posições e são vistas como subalternas. Cabe recordar que nos primeiros anos da industrialização, no início do século XX, as mulheres negras (as ex-escravizadas) foram trabalhar para as famílias das camadas altas, dedicando-se à prestação de serviços domésticos. Já as mulheres das camadas altas poderiam optar por serem professoras, enfermeiras etc. e as mulheres pobres direcionavam-se para as indústrias. A divisão sociossexual e racial do trabalho reafirma a desigualdade, a submissão e a “exploração” das mulheres negras entre as mulheres brasileiras. 

As mulheres negras no Brasil constituem o contingente populacional que sente com mais força o resultado das estratégias de sustentação das desigualdades sistêmicas. Diante dessa constatação, torna-se evidente a forma pela qual a imagem das mulheres negras tem sido construída no território brasileiro, forjada na subserviência, na invisibilidade, nos trabalhos mais precários, na objetificação de seus corpos, suas vidas e histórias.

A condição de vida das mulheres negras no Brasil deve ser compreendida considerando, portanto, o histórico escravocrata do país, a abolição sem garantia de cidadania plena e a construção do mito da democracia racial. A isso somamos a manutenção do patriarcado como sistema de opressão culturalmente validado. Essas opressões imbricadas mantem as mulheres negras em condições subalternas em relação aos homens e em relação as mulheres não negras.  Por fim, para completar a análise, é preciso ter em mente que o sistema econômico capitalista sequestra o racismo e o machismo como categorias necessárias para manutenção da exploração para obtenção da mais valia[4]. Com isso as opressões seguem em um ciclo constante de retroalimentação.

 Neste sentido, para a superação de estatísticas que sintetizam a posição vulnerável das mulheres negras em uma sociedade de classe, racializada e machista, precisamos atuar de maneira singular garantindo sua sobrevivência no combate das práticas racistas, de forma particular lutando por uma vida digna através de políticas públicas de promoção da igualdade e de forma estrutural buscando a superação do modo de produção capitalista que se sustenta imbricando sistemas de opressões.

*Juliana Mittelbach é enfermeira, especialista em Gestão Pública, especialista em Saúde Coletiva, mestranda em Saúde Coletiva, coordenadora Executiva Adjunta da Rede Mulheres Negras Do Paraná (RMN-PR), vice-presidenta do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM)


[1] As leis de Jim Crow (em inglês, Jim Crow laws) foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Todas essas leis foram promulgadas no final do século XIX e início do século XX pelas legislaturas estaduais dominadas pelos Democratas após o período da Reconstrução.

[2] Apartheid foi um regime de segregação racial implementado na África do Sul em 1948 pelo pastor protestante Daniel François Malan — então primeiro-ministro —, e adotado até 1994 pelos sucessivos governos do Partido Nacional, no qual os direitos da maioria dos habitantes foram cerceados pela minoria branca no poder.

[3] Democracia racial é um conceito que nega a existência do racismo no Brasil. Para saber mais sugiro a leitura de Movimento negro e “democracia racial” no Brasil: entrevistas com lideranças do movimento negro, de autoria de Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira.

[4] Mais-valia é o termo empregado por Karl Marx à diferença entre o valor final da mercadoria produzida e a soma do valor dos meios de produção e do valor do trabalho que é a base do lucro no sistema capitalista.

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