Por Dara Sant’Anna e Lia Araújo*
Contexto
No Brasil, o povo negro vive uma violação de direitos e violências que é impacto de uma política danosa de guerra às drogas contra nossos corpos e territórios, que cotidianamente interrompe vidas e não resolve o tráfico. O massacre do povo negro não é novidade no país. No dia 13 de maio, estivemos nas ruas “comemorando”, se é que é possível dizer isso, 133 anos de assinatura da Lei Áurea, que foi a lei que aboliu a escravatura no Brasil, mas qual o resultado disso para as mulheres, as crianças, os jovens, os homens e os idosos negros?
É fundamental compreender esse cenário, porque, depois disso, o país promove um processo de miscigenação, uma tentativa de eugenia, enquanto política de Estado, que foi um projeto que não deu certo, visto que negras e negros ainda somos maioria da população. Temos a construção do estigma dos locais enegrecidos. As favelas e comunidades são considerados, pelos próprios moradores e moradoras os “novos quilombos urbanos”, lugar onde o povo negro reside, trabalha, estuda e se diverte.
As primeiras leis criminais brasileiras mostram o tratamento desumano e distinto entre negros e brancos, a penalização da população mais pobre e preta mostra um maior controle e punição (física e mental) sobre atos cometidos. O Brasil é a vanguarda do proibicionismo no mundo, tem como “alvo” o tráfico da cannabis. Não apenas ela, mas também quem vende e quem usa. O médico Pernambucano Filho afirmava que o “pito do pango” (1925) era mais perigoso que outras substâncias largamente utilizadas no período, por considerar que este seria um atraso para o país e para a construção eugenista da figura do negro como ser de “natureza criminosa”. E essa narrativa perdura durante um século e ainda é o motivo para o superencarceramento no Brasil.
Existe uma economia local nas periferias que não perpassa o mundo das drogas, mas que não aparece na televisão, que não faz parte do diálogo sobre o território. Isso é uma coisa importante de ser dita, porque é a partir disso que vamos abordar o assunto da militarização.

Bolsonarismo, imperialismo, autoritarismo e acirramento das violências estruturais
A eleição de Bolsonaro se deu de mãos dadas com os Estados Unidos e com Israel. Ele tirou foto com as bandeiras e bateu continência para o Trump. A política de Bolsonaro é uma política de estreitamento de relação com os dois países. Falando do Brasil, não podemos nos esquecer que já foi comprovado o investimento dos Estados Unidos na ditadura militar nacional, o que também vai nos atravessar quando falamos sobre militarização.
O Brasil, diferente de muitos países, teve uma ditadura militar que não se findou com qualquer reparação, assim como a abolição da escravatura. Houve anistia para ambos os lados dessa disputa na ditadura e isso faz com que não haja o julgamento de tortura e de assassinatos. Também faz com que a gente não conseguisse sequer saber para onde foram os nossos desaparecidos, durante um longo período.
Quando falamos do processo de resistência ao período ditatorial, não podemos esquecer que a ditadura no Brasil aconteceu ao mesmo tempo em que ocorria a luta por direitos civis nos Estados Unidos. O movimento negro foi amplamente repreendido aqui no Brasil. Tivemos mortes de lideranças do movimento negro e perseguição, porque existia o medo de que se a população negra se organizasse no país, tivéssemos aqui a mesma mobilização que havia nos Estados Unidos, na época. Isso quer dizer que a lógica dessa ditadura militar, que nós herdamos até hoje nos processos de consolidação da polícia, de intervenção militar, etc., vem desse período, da ditadura militar.
O presidente saudou essa ditadura militar durante sua vida política. Diversas falas, mesmo no plenário, defenderam Brilhante Ustra e outros torturadores, que inclusive violentaram a nossa ex-presidenta Dilma, que sofreu um golpe, em 2016. Não houve um rompimento. O Brasil não conseguiu, na sua história, romper com sua lógica escravocrata e com a herança da ditadura militar. É um país que tem uma história de uma certa conciliação, de uma certa mudança ou reforma desse lugar, mas onde permanece o perdão para tudo em relação às elites. Perdoamos tudo daqueles que estiveram no poder e o povo segue sendo massacrado.
A grande massa negra, essa grande massa periférica do nosso país segue com esse histórico de massacres, que quase não são discutidos. O Brasil só foi reconhecer o racismo em 1994. Antes disso, o país se via como um lugar de democracia racial. Essa democracia racial, uma lógica de que havia de fato uma democracia, impedia diversos debates e discussões, por exemplo, de políticas públicas para o rompimento com essa violência e essa desumanização. A lógica é de que não pertencemos a esse lugar, de que não somos parte desse espaço, porque a cara que se quer que o Brasil tenha não é a nossa.
Quando fazemos o exercício de visualizar uma família branca, de classe média alta, sofrendo essas violências e isso nos parece improvável, isso tem a ver com o nosso processo histórico de embranquecimento, que dialoga com o mundo inteiro. O povo negro é colocado em um lugar de demonização. Demonização por causa do barulho dos atabaques que vinham das favelas, do som das revoltas e do medo que a população branca nutria.
Falar da nossa abolição é falar que ela não foi fruto de uma benevolência do nosso Estado. Haviam revoltas. Se alguém quiser ler – é possível acessar pelo site da Câmara – os registros dos debates que aconteceram, no Senado, para votação da abolição da escravatura, é notável que havia o medo de que, se a abolição não viesse naquele momento, ela acabasse acontecendo por causa da uma revolta popular, ainda que pacífica. A população estava se insurgindo contra o Estado estabelecido e isso não é contado na nossa história.
Desde a abolição, a narrativa é de que a princesa Isabel era boa e benevolente e que, por causa dessa benevolência, a democracia racial é constituída. Nós não tivemos um debate sobre os processos sofridos por essa população e sobre as desigualdades sociais que são frutos desse processo.
Pandemia: precarização da vida e agudização da violência
Falar da Chacina do Jacarezinho é falar de denúncias que estavam sendo feitas desde o início da pandemia no nosso país. No início da pandemia, nós tivemos algumas operações no Rio de Janeiro, na Cidade de Deus e no próprio Jacaré, que resultaram em mortes. Com a morte do George Floyd nos Estados Unidos, a mídia brasileira, que volta o seu olhar para o grande Estado imperialista, começa a divulgar e a valorizar o debate racial, noticiando todas as revoltas nos Estados Unidos, as ações, os atos, etc.
A população negra já se organiza ali no início da pandemia e vai para as ruas. Nós tivemos um grande ato em maio de 2020, em que inclusive foi colocado um aparato militar muito grande. No dia 18 de maio, aconteceu a morte de João Pedro, em São Gonçalo e o corpo dele foi retirado, levado e ficou desaparecido durante horas. A família foi encontrar depois, na frente do hospital.
Desde o início da pandemia, fazemos a denúncia, o que culminou na ADPF 635, que trouxe toda uma força para que o STF desse uma resposta a isso e proibisse as operações policiais durante o período de pandemia, porque se havia a necessidade de isolamento social, o indicativo é de que as pessoas estivessem em casa e não podemos ter operações nas casas das pessoas. Elas não podem ser alvejadas por balas.
Esses indicativos continuaram sendo descumpridos, até que no dia 6 de maio, tivemos o episódio da Chacina dos 28 mortos no Jacaré. O que foi colocado pela Polícia Civil foi de que era uma operação que já existia antes, com planejamento anterior à ADPF, por isso ela não se aplicaria nesse caso e que era uma ação de inteligência já programada. Temos que dizer que essa inteligência, qualquer que seja ela, em uma operação bem-sucedida, teria uma apreensão maior de armas. Seis fuzis é um número baixo. Nós tivemos 117 fuzis apreendidos no condomínio Vivendas da Barra, que, para quem não sabe, é o condomínio do atual presidente.
Os mortos deram entrada no hospital como “negro 1”, “negro 2”, “pardo 1”, “pardo 2”. Ou seja, não havia identificação desses mortos. Se houvesse qualquer operação de inteligência, seria preciso saber em que os tiros estavam sendo disparados. É fundamental que façamos essa disputa e que haja órgãos internacionais pressionando, porque senão, não vamos conseguir. Aí é que vem a nossa solidariedade, porque só não é possível. Eles têm as armas, as estruturas e o Estado.
Unidade na resistência ao racismo e à violência
Aqui no Brasil nós temos uma organização de mães, do movimento negro, do movimento das favelas, que já se organiza há anos na denúncia de casos como o desaparecimento de três meninos em Belford Roxo, para o qual, até o momento, a polícia não deu nenhuma resposta. As famílias estão desoladas. Desde o final do ano passado, essas crianças estão desaparecidas e nenhuma resposta foi dada. Já fazem três anos e dois meses da morte da Marielle Franco, que foi eleita como a quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro, e foi assassinada. Não conseguimos ter respostas, porque temos uma polícia que é fruto da ditadura militar e dos processos de queima arquivos, de ocultação de documentos, etc.
Temos ainda esse governo, que não tem interesse nenhum em dar respostas, que tenta criar barreiras para qualquer investigação. Não dá para esquecer que a Chacina acontece na mesma semana em que Bolsonaro e Cláudio Castro, que é o governador do RJ, se sentam para conversar.
Entretanto, desde o ano passado, temos tido um processo muito grande de unificação e de valorização da pauta racial. Não é atoa que, durante a pandemia, tivemos as obras escritas por mulheres negras como os livros mais vendidos no período. As denúncias de racismo têm sido feitas e as pessoas têm buscado se informar, se questionar sobre porque dizemos que existe racismo no Brasil. A partir desse processo, acredito que temos construído uma solidariedade, sobretudo entre mulheres, que somos as mais afetadas nesses processos.
A Chacina do Jacarezinho aconteceu na véspera do dia das mães. Temos, portanto, no mínimo 28 famílias que ficam desamparadas. As mulheres têm construído, apesar desse tipo de recorrência, canais/pontes muito grandes, como esses coletivos de mães de vítimas da violência policial. No dia 13 de maio, elas estavam na organização do ato, liderando as mobilizações. Temos conseguido observar, e o fizemos inclusive a partir do caso do George Floyd, nos Estados Unidos, a importância das mulheres nos processos de luta. Não só as mulheres negras. As mulheres brancas também participaram conosco desse processo, por identificação entre nós. A solidariedade é a grande chave.
O que temos feito é a tentativa de que se apresente alguma resposta, mas ao mesmo tempo não conseguimos ver esse governo se mobilizando para nos responder qualquer coisa, já que nem uma resposta em relação ao assassinato de uma das vereadoras mais votadas do Rio de Janeiro nós tivemos até hoje. Ainda queremos respostas em relação ao desaparecimento dos nossos meninos. É isso, nós cobramos respostas e nos colocamos nas ruas para isso.
As ações territorializadas apontam para nós um caminho nesse processo de rompimento. Precisamos entender que a militarização é parte fundamental dos processos de violência racista. Romper com a lógica militar é romper com a lógica do patriarcado. Somos nós, mulheres, pessoas negras e populações nativas que estamos ao resgatar nossa história e ancestralidade encontrando novas velhas perspectivas para se relacionar com o mundo. Nós pedimos a desmilitarização da polícia, mas também queremos a desmilitarização da vida, o fim dessa lógica de guerra, de luto, individualista, em que um ganha e os outros perdem.
*Dara Sant’Anna é militante da Marcha Mundial de Mulheres no Rio de Janeiro e do Movimento Negro Unificado. Lia Araújo é militante da Marcha Mundial das Mulheres e do Coletivo Enegrecer no Rio Grande do Norte
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