Colômbia: mobilização popular enfrenta o poder militarizado, racista e patriarcal das elites

Por Lyda Forero*

(Esse texto é uma transcrição com poucas adaptações da fala realizada por mim na live “Militarização e violência racista do Estado na Colômbia, Palestina e Jacarezinho”, promovida pela Marcha Mundial das Mulheres no dia 14 de maio de 2021).

Foto: Colômbia Informa

Colonialismo: antecedentes do autoritarismo e do racismo na Colômbia

Para falar da Colômbia é importante dizer que não podemos falar somente do que aconteceu desde 28 de abril de 2021. É um processo muito longo, que começa com o autoritarismo e o racismo estrutural que fazem parte da sociedade colombiana desde a colônia espanhola. Não vou falar dos últimos 500 anos, mas acho importante falar dos últimos 20 anos.

A sociedade colombiana é estratificada, tem uma elite que não aceita de jeito nenhum as demandas da população. Este é o começo do que a gente conhece como o “conflito armado”, a “violência”. É como a Palestina. Não podemos falar só de uma guerra que começou há 60 anos. Quando se fala em nossa história, se fala da guerra, do conflito armado, nos referimos a algo que começou há 60 anos, precisamente por uma aliança entre as elites, que não aceitaram de nenhum jeito mudar a estrutura de concentração da terra, da riqueza e do poder e excluíram as classes mais populares. Tem este fato histórico no começo do conflito dos últimos 60 anos. Esta elite é a que continua controlando o Estado colombiano há 60 anos.

É importante falar que tem o racismo e o machismo como parte desta estrutura mas que também é uma estrutura de classes e que também há uma divisão entre o campo e a cidade. Todos esses elementos fazem parte do que tem configurado o conflito armado na Colômbia e que levou diferentes guerrilhas para este conflito. No final do século 20, começo do século 21, o desgaste do conflito, a sua evolução, colocou uma situação muito difícil para a sociedade colombiana. Uma situação de concentração ainda maior do poder, da riqueza, da renda, que levou à eleição do presidente de extrema direita Álvaro Uribe.

Governos neoliberais: alinhados para precarizar a vida e priorizar o lucro

O governo Uribe, entre 2002 e 2010, fez diferentes mudanças, implementou uma lógica de guerra, que é importante de ser mencionada. Os governos anteriores e depois dele também partilharam dessa mesma estrutura de poder, mas o governo Uribe implementou dois elementos importantes do que ele chamava de “segurança democrática”. Sua proposta era acabar com as guerrilhas, acabar com a insurgência, pela via militar. Haviam duas pernas: a parte econômica, profundamente neoliberal, chamada “segurança do investidor”, que visava gerar condições para atrair investimentos estrangeiros diretos. Com essa correlação de forças, ele continuou negociando os tratados de livre comércio e de proteção de investimentos e criou uma estrutura para gerar ainda mais lucros para o capital nacional e transnacional.

Isso só seria possível se os territórios fossem pacificados a sangue e fogo e foi isso que fizeram no governo de Uribe. Oito milhões de hectares foram apropriados pelos paramilitares e quatro milhões de pessoas foram deslocadas durante este governo. Esses dados não são nossos, são dados oficiais da unidade de vítimas sob a ação militar e paramilitar que posteriormente permitiu a chegada do capital nos territórios.


O segundo aspecto dessa política foi apresentado como “coesão social”, que consistia na expansão de uma lógica do medo por meio de redes de informantes que rompiam o tecido social nos territórios. Com isso, lograram romper o tecido no campo e nas cidades, nos bairros onde havia maior presença das insurgências, das guerrilhas.

Essas foram as condições que levaram à negociação do fim do conflito entre a guerrilha das FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo colombiano, protagonizada pelo presidente Juan Manuel Santos. Mas a negociação deste acordo tinha diferentes perspectivas. Desde a perspectiva da elite, era uma paz neoliberal. Entendida como a pacificação do território, paz como submissão, paz como o ato de acabar com o conflito, para permitir a expansão neoliberal e a chegada dos investimentos. Mesmo que depois Santos e Uribe tenham se colocado em posições diferentes, não é casual que Juan Manuel Santos fosse o Ministro de Defesa do governo anterior.

Resistência do povo colombiano, repressão e aprofundamento da pobreza

Por outro lado, os movimentos e organizações sociais apostavam em uma paz com justiça social e ambiental, defendiam uma forma diferente de resolver os conflitos estruturais que ainda existem na sociedade colombiana.

O acordo foi firmado em 2016 e o atual presidente chegou ao governo com a promessa de destruí-lo. Chegou à presidência dizendo que destruiria o acordo e é o que tem feito. Descumpre todos os pontos do acordo, no econômico, no político, no que tem a ver com desenvolvimento rural, reforma agrária e a fumigação nos chamados cultivos de uso ilícito. Tem permitido, além disso, um processo sistemático de assassinatos. Até hoje, em 2021, foram mortas 62 lideranças, 22 ex-combatentes e houveram 33 massacres. Só em 2021. E esses dados mudam todo dia.

Essa agenda levou à mobilização da população em novembro de 2019. Tivemos uma greve geral naquele ano. Pela primeira vez, desde 1977, falamos de um momento em que o país parou completamente. A resposta foi a criminalização e a agressão policial e pela primeira vez, desde os anos 70, o decreto do toque de recolher. Pela primeira vez em mais de 40 anos, em um país tão violento, houve este decreto. O governo usou a pandemia para romper a mobilização e para impor ainda mais medidas neoliberais que não havia conseguido implementar antes. Somente em 2020, 3,5 milhões de pessoas caíram na pobreza. Agora temos 42% da população em situação de pobreza. 

Pandemia de covid-19 e o cenário em 2021

Entre as medidas que o governo tomou para aumentar os lucros do capital, em vez de ajudar a população, houve o pacote de reformas que levou à atual mobilização. O pacote traz muitas políticas que, historicamente, os movimentos tinham conseguido brecar. Os movimentos não aceitaram, com a atual mobilização, a imposição da reforma tributária, que inclui o imposto IVA de 19% para a cesta básica, para os serviços públicos, inclusive a internet. 

É isso que o governo está tentando fazer agora. Também está impondo uma reforma que traria uma privatização ainda maior da saúde e na prática uma reforma trabalhista com mais cortes nos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. É este pacote que o governo colombiano quer impor. E a resposta à mobilização é ainda mais autoritária do que a de 2019.

De acordo com a ONG Temblores, que está acompanhando o processo, a repressão policial gerou, até hoje, 362 vítimas de violência física, 39 assassinatos, 16 vítimas de violência sexual e 3 vítimas de violência de gênero. Este é só um panorama geral, faltam muitas coisas, como um exemplo de como este governo autoritário, que dá espaço para investimentos estrangeiros e para o neoliberalismo, sempre age para criminalizar e reprimir o movimento social.

Conexões com os ataques à Palestina

A resistência na Palestina sempre chama para a solidariedade. Em contextos diferentes e com histórias também diversas, temos a mesma luta. Uma luta contra o capital, contra o patriarcado e contra o racismo que vivemos em cada país. Na Colômbia, esta resistência à violência policial, à violência do Estado colombiano, tem muitos anos. É importante falar nesta conexão das lutas. 

No ano passado, em setembro, tivemos o assassinato de um advogado. Ele saiu de sua casa, onde estava em quarentena, e os policiais o assassinaram. Do mesmo jeito que aconteceu com o George Floyd. No território colombiano, havia esta memória do que estava acontecendo nos Estados Unidos e a reação da população, em Bogotá e em outras cidades, foi protestar contra a violência policial. No ano anterior e em 2020, com a pandemia, com as medidas de repressão ainda maiores, 13 pessoas foram assassinadas em uma só noite em setembro de 2020.

As pessoas que começaram a se manifestar no dia 28 de abril de 2021 sabiam disso, sabiam qual seria a resposta da polícia. Mas a demanda, a denúncia, a força do movimento e da resistência são tão importantes, que as pessoas acham que vale a pena correr o risco. Em nenhum lugar do mundo deveria haver risco de vida quando se protesta, mas o direito mínimo de reivindicar direitos não existe na Colômbia, não apenas com a realidade da repressão policial, mas também com disposições legais que autorizam a polícia a matar. O governo usa a ideia da “assistência militar” como uma possibilidade para ordenar, para “pacificar” a cidade e os campos. 

Reivindicações das mobilizações populares

O que pedem os movimentos e quem são os movimentos? Há um histórico de mobilização na Colômbia. Nos últimos anos, tem feito greves muito grandes contra os tratados de livre comércio e contra os descumprimentos do acordo de paz. As mobilizações incluem os sindicatos, indígenas, os campesinos e as campesinas, que têm agitado politicamente o país. Além disso, desde 2019, há uma mobilização mais espontânea de jovens que estão demandando direitos básicos que nunca tivemos: saúde, educação pública e acesso à terra. A renda básica também é uma das demandas neste momento. São reivindicações da população mais urbana, mais afetada pela crise e pelo neoliberalismo, neste último período, e que estão se somando à mobilização mais histórica de campesinos, campesinas, trabalhadoras e trabalhadores organizados e indígenas.

Desde o ponto de vista dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo e da cidade, das campesinas e campesinos, as demandas continuam a ser pelo cumprimento do acordo de paz, pela reforma agrária e contra a pulverização com glifosato. Esta foi uma vitória no passado, mas o governo voltou agora com o uso legal do glifosato e com a exploração de petróleo por meio do fracking, ao contrário do que havia prometido na eleição. A agenda ambiental chega mais forte com esses dois temas, mas está presente nas demandas em defesa dos territórios.

O racismo está aparecendo com cada vez mais força. Tem ataques aos indígenas. No domingo, uma caravana de indígenas ia chegando em Cali, uma cidade que historicamente recebeu os povos indígenas, e foi recebida com agressões armadas por parte de pessoas da população civil. A resposta do governo não foi condenar. Foi dizer que campesinos, campesinas e indígenas deveriam voltar e ficar em seus territórios. Estão criando uma ideia de apartheid, de que os indígenas deveriam ficar nos resguardos (uma forma legal de chamar aos territórios indígenas). Um discurso racista, que diz que são as pessoas que estão nas cidades as que produzem riquezas, enquanto os indígenas recebem impostos e não deveriam ter direitos. Diz, ainda, que são eles os que fazem necessária uma reforma tributária, pelos gastos que geram.

Essa lógica do governo de excluir, de diferenciar, de romper o tecido, é parte do que está sendo rejeitado pelos movimentos. Há diferentes organizações, há um comitê de greve que leva as propostas dos movimentos organizados, e também há esses movimentos de jovens que trazem outras demandas. O governo não ouve o comitê e também não dá nenhum espaço para jovens não organizados, o que também mostra que precisamos pensar em outras formas de participação e de construção.

Organização popular e internacionalista contra o capitalismo patriarcal e racista

A greve geral na Colômbia começou dia 28 de abril e continua até agora, não tem prazo definido e as mobilizações fazem parte dela. Sobre a repressão paramilitar, a presença paramilitar nas cidades, não é possível negar que ela existe. Os ataques racistas contra indígenas foram promovidos por civis armados. Sempre tem imagens e denúncias da presença armada. É difícil falar disso quando não temos prova e determinadas afirmações podem se voltar contra nós. Ficam abertas questões como: quem, na Colômbia, se beneficia dessa violência? Não são as classes populares que historicamente têm sofrido essa violência. Quem se beneficia e quem está por trás da violência nas ruas?

O capital atua em todos os países e a resposta que podemos dar é a solidariedade internacionalista. O que acontece na Colômbia também acontece em outros países e também tem impacto neles. A situação da Venezuela é um exemplo. A situação na Colômbia é usada para atacar a Venezuela. A situação da Colômbia não é denunciada internacionalmente, mas a situação da Venezuela é. A militarização da Colômbia é usada contra a Venezuela. É uma questão da paz na nossa América Latina. 

A resposta contra o imperialismo, na solidariedade de classe, como mulheres, de raça, tem que ser geral na América Latina. Nós, desde as organizações, como povos organizados, como mulheres, temos que pensar em respostas mais estruturais, mais sistemáticas, mais sistêmicas contra o capital e contra as diferentes formas de poder. 

É importante dizer que o que está acontecendo na Colômbia afeta outros países, mas a solidariedade também afeta. O que o povo colombiano viu nas embaixadas, nos movimentos que saíram em seus países para denunciar a violência, tem sido muito importante para continuar esta greve que começou dia 28 de abril e ainda não terminou. E vai continuar, porque o povo colombiano fica nas ruas até ter uma resposta.

*Lyda Fernanda Forero é ativista de IdEAS (Integración de educación ambiental y social)

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