*Por Juliana Mittelbach
Nasci em Porto Alegre, mas fui criada no Rio de Janeiro. Cheguei com dois anos de idade e vivi lá até os 22. A cidade é linda e tem diversas atividades culturais, eventos anuais e pontos turísticos que encantam quem conhece. As atividades culturais são do que mais sinto falta: shows na praia, ou em teatro de lona (barato), bares que não cobram entrada, quiosques com pagode ao vivo, dentre outros. Sinto falta de sentar na calçada e bater papo com os amigos. Alguns pontos turísticos porém tem custo de acesso tão elevado que só são conhecidos por boa parte dos moradores da cidade pela televisão. Mas quero tratar do que é ser negra no Rio nos eventos turísticos anuais, em especial no Carnaval. Muitas vezes deixei de sair de casa com medo de ser confundida… consegue imaginar com o que?
A propaganda que é feita para o público externo sobre o que é o carnaval desconsidera completamente a história. O Carnaval é uma festa popular realizada durante 05 dias desde 1892, antecedendo o início do período da quaresma católica. É constituído por blocos de carnaval, bailes de fantasia, festas de rua e caracterizado pela irreverência.
As escolas de samba surgiram somente em 1928 com a “Deixa Falar”, fundada por Nilton Basto, Ismael Silva, Silvio Fernandes, entre outros. O termo “escola de samba” foi usado, pois na rua Estácio, onde aconteciam os ensaios, havia uma Escola Normal. A escola de samba Deixa Falar funcionava ao lado desta Escola Normal.
A Deixa Falar fez muito sucesso entre os moradores da região. Ela acabou por estimular a criação, nos anos seguintes, de outras agremiações de samba. Surgiram assim, posteriormente, as seguintes escolas de samba: Cada Ano Sai Melhor, Estação Primeira (Mangueira), Vai como Pode (Portela), Vizinha Faladeira e Para o Ano sai Melhor.
Nestas primeiras décadas, as escolas de samba eram organizadas de forma simples, com poucos integrantes e pequenos carros alegóricos. Já havia competição para definir qual escola apresentava o melhor desfile, porém a competição entre elas não era o mais importante, mas sim a alegria e a diversão.
Por décadas os desfiles das escolas de samba tiveram menor importância dentro do carnaval por se tratar de algo relacionado à negritude. O elegante eram as festas que aconteciam em clubes caros da elite. A partir da década de 1950, a aproximação de intelectuais de esquerda ao samba e conseqüente incorporação da classe média aos desfiles, deram destaque às escolas de samba que foram valorizadas como centro do carnaval carioca e evento nacional. Desde 2004 o Carnaval do Rio de Janeiro é considerado o maior carnaval do mundo.
A apropriação do Carnaval pelas elites e a transformação do desfile das escolas de samba em negócio lucrativo causou algumas mudanças nas escolas. Passaram a existir os enredos encomendados por grandes corporações, alas inteiras sem nenhum membro da comunidade de origem da escola, profissionalização de integrantes (comissão de frente, por exemplo), fantasias de alto luxo para ser usada por destaques da elite nacional, redução da fantasia das mulheres com alto grau de exposição do corpo, convite para que mulheres midiáticas ocupassem lugares na escola que antes eram escolhidos dentre as mulheres da comunidade (como a rainha da bateria), transmissão ao vivo na TV aberta, dentre outras mudanças visando aumento do lucro dos investidores.
Desde 1991 a Globo criou uma personagem que não tem origem cultural e sim de marketing, para divulgar a transmissão do evento: a “Mulata Globeleza”. Essa mulata samba nua, coberta por purpurina, ao som da vinheta de carnaval da emissora.
Problema 1: A palavra mulata, de origem espanhola, vem de “mula” ou “mulo”: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais estéreis nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria que não deveria existir. Empregado desde o período colonial, o termo era usado para designar negros de pele mais clara, frutos do estupro de escravas pelos senhores de engenho. A adjetivação “mulata” é uma memória triste dos 354 anos (1534 a 1888) de escravidão negra no Brasil. Por um tempo chegou-se acreditar que as mulatas e os mulatos fosse estéreis como as mulas.
Problema 2: A repetição anual da vinheta da “Mulata Globeleza” naturalizou na população brasileira a ideia de que é tradição de carnaval as mulheres andarem nuas durante esse período. Enquanto os brasileiros acham que “não há nada demais nisso” para os estrangeiros é um convite a exploração sexual, em especial das mulheres negras.
Para mim, mulher negra jovem (sai do Rio aos 22) era comum na praia, em bares, em festas de carnaval ouvir a pergunta: “quanto é o programa?”. Enquanto as mulheres brancas eram elogiadas pela forma física que iriam expor no desfile para nós, mulheres negras, cabia a pecha de sermos todas desfrutáveis durante o carnaval. Se estivesse acompanhada por um homem branco, crescia a certeza dos turistas de que eu era prostituta.
Problema 3: Somente agora ao 34 anos, relembrando essa situação que para mim no Rio era corriqueira, percebi que isso não deveria ser considerado normal. Para não ter que explicar que nem todas as mulheres negras cobram por sexo no carnaval, eu me privava de ir a determinados locais que queria. Enquanto estivermos em um sociedade patriarcal estaremos em constante violência psicológica.
Enquanto o feminismo liberal traz a pauta de desconstrução do padrão estético de beleza, nós mulheres negras lutamos contra a hiper-sexualização dos nossos corpos. Tem diferença? Sim. E muita.
O padrão de beleza imposto às mulheres é um padrão eurocêntrico, onde o bonito é ter beleza branca angelical. Cabelos loiros, quadril e busto pequenos porem tesos, corpo magro, olhos claros, bochechas rosadas, nariz e lábios finos. A mulher negra nunca foi considerada angelical, pois não cabe na descrição. As características fenotípicas da mulher negra são o contrário do que se considera angelical. O quadril largo, os seios fartos e os lábios carnudos nos fizeram ganhar o título de termos “a cor do pecado”. Inclusive por tempos esse termo justificou o estupro de mulheres negras, pois seu corpo “quente” gerava nos homens instintos primitivos incontroláveis.
O debate da hiper-sexualização da mulher negra ainda é cercado de polêmicas. Há quem diga que a presença (e vitória) de mulheres negras em concursos de beleza, traz à tona a representatividade da negra como bela, indo na contramão da hiper-sexualização. Nem sempre. Grande parte das vitoriosas desses concursos tem quadris na medida branca, busto na medida branca, sobrando para característica negras a cor da pele, o lábios carnudos que são considerados sensual e o cabelo que no concurso “até” esta Crespo, mas nas atividades pós-vitória, em presenças VIP, em programas de TV, já está muito bem escovado. Eu sempre pondero que essa “representatividade” em concurso estético, muitas vezes aclamada pelos movimentos, possa acabar gerando um padrão negro de beleza e por consequência mais uma pauta para desconstruirmos, além da hiper-sexualização.
Trago a percepção de que a “Mulata Globeleza” não deveria existir. É um desserviço na luta das mulheres negras. Porém tenho de reconhecer que foi um grande avanço a mudança deste anos nas vestimentas da Globeleza, além de mostrar que o carnaval é multicultural com manifestações regionais como o Frevo, Maracatu e Axé.
Essa vitória é sim resultado das manifestações feministas que repudiam a exposição dos nossos corpos como mercadoria turística e que fazem campanha permanente contra a cultura do estupro na sociedade machista que vivemos.
Também é uma vitória que valoriza a cultura negra, mostrando que samba carrega a história de um povo. Samba não é somente carnaval. Nossas músicas carregam as vozes de nossa ancestralidade. De nenhuma forma nossa cultura deveria ser vinculada à exploração sexual como vem acontecendo.
Concluo com as palavras de Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro:
“Não aceitamos ter nossa identidade e humanidade negadas por quem ainda acredita que nosso único lugar é aquele ligado ao entretenimento via exploração do nosso corpo. Não mais aceitaremos nosso corpo refém da preferência e da vontade de terceiros, para deleite de um público masculino e de uma audiência que se despoja do puritanismo hipócrita apenas no Carnaval. Não mais aceitaremos nosso corpo narrado segundo o ponto de vista do eurocentrismo estético, ético, cultural, pedagógico, histórico e religioso. Não mais aceitaremos os grilhões da mídia sobre nosso corpo!”
Nossos passos vem de longe e seguiremos em marcha até que todas sejamos livres!
*Juliana Mittelbach é militante da Marcha Mundial das Mulheres do Paraná e integra o núcleo de mulheres negras Dandara.
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