A colheita de sonhos em tempos de resistência

 

“Sinto que sou um bosque

que há rios dentro de mim,

montanhas,

ar fresco, ralinho

e parece-me que vou espirrar flores

e que, se abro a boca,

provocarei um furacão com todo o vento

que tenho contido nos pulmões”.

Gioconda Belli

MulheresContraCunha

*Por Gleisa Campigotto, Elisa Maria e Tita Carneiro

O início do ano de 2015 é marcado pelo acirramento da luta de classe. Iniciamos o ano com o anúncio dos retrocessos dos direitos da classe trabalhadora. Os primeiros cortes são as medidas provisórias 664/14 e 665/14, os quais toram mais rigorosos o acesso a uma série de benefícios sociais. A MP 664 muda as regras de pensão e auxilio doença, a MP 665 diz respeito a mudança de regras do seguro-desemprego. O ciclo de desestruturação social tem sua continuidade com a PEC 4330/04, que prevê a regulamentação da terceirização irrestrita, inclusive nas atividades fim.

Reafirmando Elisabeth Souza-Lobo, quando diz que “a classe operária tem dois sexos” compreendemos que a condição de opressão vivenciada pelas mulheres, faz com que os primeiros golpes recaiam sobre nossos corpos, vidas e territórios e nos exige estar na linha de frente desta batalha.

Agora no final de outubro e em novembro, a primavera das mulheres expressa a luta política do ano de 2015, trazendo consigo os enfrentamentos realizados pelas mulheres neste intenso ano de 2015.

Desde o dia 08 de março estivemos construindo a IV Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres em diversos lugares do mundo assim como em vários Estados do Brasil. Nos organizamos em torno de denúncias bem como de alternativas feministas, colocando no horizonte estratégias em que a vida esteja em primeiro lugar.

Em abril continuamos nas ruas denunciando a exploração-dominação a que estamos submetidas por grandes empresas capitalistas. Manifestamos a nossa indignação no dia 24 de abril perguntando “Quem fez sua roupa?”, pois nesse dia, no ano de 2013, mais de 1.000 mulheres foram mortas com a queda do edifício Rana Plaza, em Bangladesh. Uma fábrica que funcionava em condições extremamente precárias, na realização de um trabalho exaustivo, em troca de baixíssimos salários e de forma predominante pelas mulheres. A campanha mundial de solidariedade feminista coincidiu com o período em que aqui no Brasil estivemos nas ruas para impedir que o projeto de lei 4330/04 generalizasse a terceirização e precarização das relações de trabalho no país.

Ainda em abril as mulheres de Minas Gerais estiveram em Marcha “Em defesa da água, contra a mineração”; em agosto 70.000 margaridas marcharam em Brasília pedindo a cabeça do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha; em setembro as mulheres do Rio Grande do Sul estiveram “Em luta pela legalização do aborto”.

Para se ter ideia do acirramento enfrentado no Brasil, ao mesmo tempo em que milhares de mulheres não arredaram o pé das ruas ao longo deste ano, o Brasil foi também palco de ataques recheados de misoginia contra a presidenta da república, assim como de ameaças à integridade física e moral de diversas parlamentares brasileiras. Exemplos de como a violência contra as mulheres é cotidiana em nossa cultura, estando onipresente desde as periferias aos mais altos palanques. Em outubro, a redação da prova do Enem convidou milhões de pessoas a refletirem sobre o problema social da violência contra as mulheres no país, da mesma forma as Campanhas sobre a violência contra as mulheres foram viralizadas nas redes sociais, a exemplo de #MeuPrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, e mais uma vez muitos ataques misóginos nos são lançados como tentativa de silenciar as nossas vozes.

Os ataques à vida e autonomia das mulheres são originados cotidianamente inclusive por aqueles que deveriam cumprir o papel de representantes políticos do Congresso Nacional. No entanto, a atual conformação dessa arena conserva características similares a que o país vivenciou nos longos anos de ditadura militar e a ofensiva dos setores mais reacionários, representados na bancada BBB (Bala-Boi-Bíblia) tem cotidianamente afrontado a democracia. Infelizmente, estes supostos representantes, tais como Jair Bolsonaro (PP), Marco Feliciano (PSC), Roberto Freire (PPS), Alberto Fraga (DEM) a Eduardo Cunha (PMDB) têm explicitado em suas proposituras a incompatibilidade entre as nossas necessidades do povo brasileiro e os seus próprios interesses à serviço do grande capital, azeitado pela máquina do patriarcado. Torna-se evidente que existe um vácuo na representatividade política assim como tem sido insuficiente a participação das mulheres nos espaços de poder.

Se por um lado há a ofensiva dos setores articulados ao capital, há também o reposicionamento dos grupos colocados em condição de subalternidade nesta sociedade capitalista-racista-patriarcal e heteronormativa, na tentativa de recolocar na ordem do dia a organização popular e a disputa pelo poder. Vivenciamos, portanto, a polarização dos projetos de sociedade antagônicos e o acirramento dos conflitos.

No final de outubro e início de novembro a indignação das mulheres ganha corpo e toma as ruas de todo o Brasil, desta vez com o objetivo de impedir o retrocesso no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. As mulheres saem às ruas, no que ficou conhecida como a Primavera Feminista ou Primavera das Mulheres na tentativa de barrar o Projeto de Lei 5069/2013 que incentiva o silêncio e a resignação das mulheres diante da violência sexual, fortalecendo também a ideia de que as mulheres devem exercer a maternidade, custe-lhes o que custar.

O antagonismo entre dois projetos políticos ficou evidente na Marcha das Mulheres Negras, quando 20 mil mulheres marcharam em plena esplanada dos ministérios e um grupo de aproximadamente trinta homens brancos, fascistas atiraram contra estas. Enquanto as mulheres marchavam pelo fim da violência, contra o racismo e pelo bem viver, esse grupo fascista reivindicava o impeachment da presidenta Dilma, o que representa um retrocesso na nossa recente democracia. Ou seja, enquanto as mulheres querem pluralizar as vozes públicas, outros querem se manter no topo do poder, sem concessões.

Ainda em novembro é publicado O Mapa da Violência/2015, que traz o dado de que nos últimos dez anos o feminicídio contra as mulheres negras teve o aumento de 54%, comprovando a realidade de que a violência opera segundo critérios de sexo/sexualidade, raça/etnia e classe. O patriarcado se mantém de pé por meio da combinação entre a violência contra as mulheres e a ideologia de que estas são inferiores. Este mesmo patriarcado está expresso naquilo que conhecemos como divisão sexual do trabalho do sistema capitalista, em que as funções sociais de maior importância, tais como a chefia religiosa; a operação das forças armadas; a construção da ciência assim como a representação política historicamente foram construídas por homens e para os homens das classes dominantes. Apesar das alterações na forma em que se apresenta, a natureza do patriarcado permanece a mesma.

Relembramos Heleieth Saffioti, que diz sobre o patriarcado que “Se a contagem for realizada a partir do começo do processo de mudança, pode-se dizer que o patriarcado conta com a idade de 5.203-4 anos. Se todavia, se preferir fazer o cálculo a partir do fim do processo de transformação das relações homem-mulher, a idade desta estrutura hierárquica é de tão somente 2.603-4 anos. Trata-se a rigor, de um recém-nascido em face da idade da humanidade, estimada entre 250 mil e 300 mil anos”. Ou seja, o patriarcado é um sistema recente em comparação a história da humanidade e como todo processo histórico, não é eterno.

NúcleoSoledad

Neste sentido, nós mulheres da Marcha Mundial compreendemos que para a existência de um mundo realmente novo é preciso provocarmos transformações estruturais que compreendam a totalidade da vida social, ou seja que tenham incidência sobre as relações sociais de reprodução (esfera privada) e produção (esfera pública), assim como uma reforma política em que as mulheres sejam protagonistas e representantes da diversidade  das trabalhadoras brasileiras, compreendendo que somos negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, bissexuais, transexuais.

Enquanto alternativa feminista insistimos que o tempo social precisa ser reorganizado entre mulheres, homens e Estado. De tal maneira que o tempo destinado à reprodução social da vida, trabalho doméstico e de cuidados seja repartido de forma igualitária, para que o tempo destinado às atividades de organização social e política, atividades profissionais, intelectuais e o lazer possam se constituir uma realidade na vida de todas as mulheres. Reafirmamos que é preciso reconstruir um bloco histórico, político e social, que seja capaz de se apresentar como alternativa para esse momento político. Sabemos que essa construção não é fácil, vai nos exigir paciência histórica e generosidade política.

Apostamos na entrada das mulheres nos espaços de decisão e poder assim como na organização das mulheres nos movimentos feministas e sociais como sendo ponto de partida à reconstrução de um mundo em que nós mulheres possamos construir e contar a história na primeira pessoa do plural.

Que a mística da Primavera Feminista seja a nossa companheira das próximas estações, pois sozinhas andamos bem, mas de mãos dadas andamos bem melhor.

 

“Abaixo o patriarcado que vai, que vai cair

Pra cima com o feminismo que vai vencer, que vai vencer!”

 

Referências Bibliográficas:

Sousa-Lobo, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos. Editora Fundação Perseu Abramo, 2ed. 2011.

Saffioti, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. Editora Expressão Popular, 2ed. 2015.

 

 *Gleisa Campigotto, Elisa Maria e Tita Carneiro são militantes do Núcleo Soledad Barrett, da Marcha Mundial das Mulheres de Pernambuco

 

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