Por: Tatiana Oliveira*
Na mesma semana que agricultor@s colombianos se puserem em greve [1] para reivindicar o cumprimento de acordos assinados em 2013 com a gestão neoliberal de Juan Manuel Santos – exigindo melhores condições de trabalho para pequenos e médios produtor@s ante os impactos da assinatura de tratados de livre comércio e de uma maior presença no mercado agrícola do país de grandes empresas do setor -, se iniciou em Santiago, no Chile, a IV Conferência Especial sobre a Soberania Alimentar.
As pautas convergentes entre o movimento camponês, que, na Colômbia, ganhou ruas e roçados contra a globalização neoliberal no campo, contra a expansão (e exploração) do agronegócio, em defesa da natureza, dos bens comuns, da agroecologia e, claro, da segurança alimentar, expressa em cores vivas a urgência de um amplo debate que envolva, por um lado, o reconhecimento dos rasos limites de eficácia e de eficiência, desde o ponto de vista popular, do capitalismo no meio rural; e, por outro, a não neutralidade dos organismos internacionais em relação a esse tema.
Mas o que é essa tal de “segurança alimentar”? Segundo o artigo 3º da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) compreende a realização do direito de todas e todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o aceso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
Nós sabemos, no entanto, que nos marcos do capitalismo global e neoliberal, de acordo com a maneira pela qual a indústria alimentícia vem se desenvolvendo, a concretização dessa norma não passa de utopia – no pior sentido da palavra, isso é, de um horizonte distante, chegando ao irrealizável. Segundo a FAO, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, até o ano 2050, a humanidade contará cerca de 9 bilhões de habitantes, elevando, com isso, consideravelmente, e ainda no século XXI, a demanda por alimentos.
Diante dessa aparente urgência, governos e organismos internacionais – como a FAO e outras agências do sistema ONU – têm apostado em um papel protagônico do agronegócio para o progresso técnico e elevação da produção agrícola. Digo aparente porque, embora a produção já disponível de alimentos seja hoje suficiente para atender a demanda mundial, isso não tem impedido a recorrência de crises de desabastecimento de alimentos e epidemias de fome pelo mundo.
Esse dado é comumente utilizado como um indicador de que a fome se relaciona antes com um problema de distribuição dos alimentos socialmente produzidos do que particularmente com a sua produção. Existe um problema de distribuição resultante da desigualdade social e de renda que afeta diferentes países e sociedade. Mas é preciso apontar que, sim, há um problema de produção.
Observamos historicamente que os empresários do setor alimentício não produzem para o consumo local, e, sobretudo, não produzem segundo os interesses e tradições de cada povo. Rompem, portanto, a barreira das especificidades que caracterizam a alimentação das diferentes culturas. Como todo movimento de globalização oriundo do mercado, empreende, na verdade, a pasteurização, a uniformização das experiências e das culturas.
Quando não direcionam a produção para nichos rentáveis no mercado internacional de commodities – como a laranja, o milho ou a soja – os executivos do moderno latifúndio monocultor incorporam à produção as chamadas sementes transgênicas, geneticamente modificadas, além de pesadíssimos pesticidas e agrotóxicos – todos, das sementes à química, comercializados por empresas monopolistas como a Monsanto. Sem mencionar os danos provocados ao meio ambiente por esse modo de produção, tal prática fere gravemente – a ciência tem provado – o princípio da alimentação como fundamento para o cuidado da saúde.
Talvez a esse ponto já não pareça mais estranho a menção à arquitetura de governança global, e, particularmente, ao sistema ONU. Quando em junho 2011, José Graziano, brasileiro, foi eleito secretário geral da FAO, eu comemorei [2] a sua eleição como uma ampliação das possibilidades de aprofundamento da luta pela erradicação da fome no mundo. Mas, como dia o ditado, uma andorinha só não faz verão.
É preciso ter uma visão mais ampla do sistema internacional excludente em que vivemos. É preciso compreender que a ampliação geográfica e o acirramento qualitativo, em termos de atores e agendas, dos processos de globalização em curso no mundo após o final da Guerra Fria levaram à flexibilização da noção de fronteira nacional, logo também de soberania, a exemplo do que acontece com a formação de cadeias globais de produção.
O fim do regime de bipolaridade evidenciou o fato de que as assimetrias políticas verificadas na política internacional influenciam de forma nada desprezível a correlação de forças e o conflito distributivo interno dos países. Por isso, o tema da mudança na arquitetura de governança global também é uma pauta do movimento feminista, pois só assim será possível debelar pesados entraves estruturais que obstaculizam a transformação do mundo e da vida das mulheres.
Na Conferência sobre Soberania Alimentar, que incluiu uma reunião especializada de mulheres, Francisca Rodríguez, porta-voz da Aliança para a Soberania Alimentar dos Povos da América Latina e do Caribe, cobrou uma maior participação dos movimentos sociais e campesinos na FAO, e uma ação mais energética da direção dessa organização que permita resistir à ofensiva territorial, ambiental, econômica e cultural que vivem as comunidades produtoras de alimentos em todo o continente.
Veja a fala de Francisca Rodríguez aqui:
Francisca ressaltou também a importância de que uma organização como a FAO, criada após a II Guerra Mundial com o mandato de combater a fome, não pode permanecer neutra frente um modelo de desenvolvimento capitalista que promove a fome e as populações campesinas que, por produzirem alimentos, e, portanto, combaterem a fome, permanecem sujeitas a níveis extremos de pobreza e abandono.
Mulheres do campo e da cidade, camponesas, pescadoras, indígenas, trabalhadoras, militantes da agroecologia, estamos atentas aos processos latino americanos e caribenhos de vertiginosa mercantilização da vida! Os nossos governos progressistas ainda não lograram avançar nesse debate, com a exceção, talvez, dos casos boliviano e equatoriano. Sendo assim, dizemos não! Dizemos não à globalização neoliberal, à mercantilização das nossas vidas e à privatização dos bens comuns.
Reconhecemos a contribuição fundamental das mulheres para a produção e o manejo saudável dos alimentos. Permaneceremos em marcha em combate contra a “economia verde”, por uma existência livre de transgênicos e agrotóxicos, por águas e solos livre de poluição. Entendemos que da natureza, assim como do feminismo, nasce uma crítica radical ao modelo capitalista predatório de acumulação. Até que tod@s sejamos livres!!!
* Tatiana Oliveira é coordenadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e militante do núcleo Rosa dos Ventos, da Marcha Mundial das Mulheres.
[1] Sobre a greve na Colômbia ver:
Paro agrario y cambio climatico
Cumbre Agraria Campesina, Etnica y popular se une al paro agrario
[2] OLIVEIRA, Tatiana. “José Graziano na FAO: o que isso significa para o Brasil?” Boletim Opsa, Observatório Político Sul Americano [www.opsa.com.br], n. 02, abri./jun. 2011, p. 4 – 12.
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