Por Tatiana Oliveira*
Acabei de ler um artigo excelente, que vou compartilhar com vocês. A ideia, entretanto, não é descrever o texto, mas pensar com ele sobre as nossas próprias experiências, sobre o nosso cotidiano e sobre como é difícil, porém, importantíssimo, que todas nós nos engajemos, juntas, não só na rua e na luta concreta, mas também na crítica e na disputa cotidiana em torno do simbólico nas nossas comunidades: nos nossos espaços de militância política, no trabalho, na escola, na universidade, em casa, no lazer, nas conversas com amigas e amigos, no tratamento que dispensamos às nossas filhas e aos nossos filhos, nas nossas relações afetivas em geral etc.
Pois enquanto o machismo e o patriarcado forem dados da nossa realidade, constituindo intersticialmente a maneira pela qual mesmo nós, feministas, vemos e vivemos o mundo, percebê-los e resistir a eles se torna muito, mas muito, mais difícil. E, ainda, porque ambos, o machismo tanto quanto o patriarcado, adquiriram ao longo do tempo a habilidade de se transmudar sob os ares da neutralidade e da naturalidade. Eles constituem a forma de pensar estabelecida no ocidente, e, assim, parecem imunes ao tempo. É aquele velho discurso: sempre foi assim, logo, sempre será assim. É por isso que devemos dar visibilidade à opressão de gênero, persistindo na crítica e na denúncia dos eventos que pareçam mais ingênuos, embora, sem perder, ao mesmo tempo, a dimensão propositiva dessa crítica, sem deixar de apontar, enfim, novos caminhos a serem trilhados.
Nesse sentido, é importante começar dizendo que o objetivo do feminismo nunca foi o de fixar de modo inequívoco, isso é, inquestionável, uma visão de mundo ou, ainda, prescrever uma forma determinada para se viver o mundo. Nós, mulheres, sabemos muito bem o que acontece quando o discurso e as práticas vão por esse caminho… Ao contrário, o feminismo é uma utopia libertária e emancipatória. O feminismo é uma utopia porque através dele somos capazes de nos posicionar no abismo do mundo, no seu limite, onde podemos imaginar, deparando-nos com um futuro que está para ser construído, as várias possibilidades de outra existência. Utopia, ou outopos, é, em primeiro lugar, negatividade. Mas é também uma construção, uma negação-construção. É, sim, a rejeição do lugar e do tempo presente. E, no entanto, com isso, abre espaço para a invenção de um lugar-outro, de um tempo-outro, de uma nova realidade, de uma nova forma de vida.
Quando os sonhos utópicos se ascendem, ilumina-se o horizonte, um horizonte de expectativas e esperanças, coletivas e individuais, dando uma nova luz à paisagem social, dando luz à transformação social. Não é isso que queremos dizer quando reivindicamos e conclamamos a revolução, ou melhor, o feminismo revolucionário?
Além disso, na definição em que estamos operando, o feminismo é também libertário. De um ponto de vista criativo, o feminismo é libertário porque a liberação moral da sociedade que preconizamos não se constitui como anomia, na ausência absoluta de regras e de padrões sociais, mas como a articulação das diferenças através do que há de comum na pluralidade de identidades em circulação, na diversidade de formas, cores, amores, desejos… Logo, uma libertação moral que se reverte em mais, não menos, coesão social, porque estimula os sentimentos de alteridade, empatia e tolerância; não o egoísmo, o preconceito ou o ódio. Do ponto de vista crítico, o feminismo é libertário porque denuncia a parcialidade do discurso de liberação sexual das mulheres (e dos homens), assim como os seus efeitos opressivos e repressivos do ponto de vista social e cultural, de controle das nossas vidas e dos nossos corpos, de vigilância sobre os nossos desejos e de discriminação em relação aos nossos direitos.
A moderna liberação do nu, da exposição descoberta dos corpos, inclusive com a aceitação e o estímulo de todo o Ocidente, por exemplo, não reverberou no sentido de eliminar da experiência da sexualidade sentimentos como os de culpa ou de vergonha. O que aconteceu, de fato, foi o aumento do controle, da vigilância e da punição, particularmente no caso das mulheres, quando essa questão se complexifica e se vincula a debates como aquele sobre o papel da mulher na sociedade como guardiã da família e do trabalho que permite a reprodução da vida, ou seja, da mulher como responsável pelo cuidado; sobre a nossa autonomia sexual e reprodutiva; sobre o uso mercantilizado da imagem dos nossos corpos e sobre como nós, mulheres, devemos também vender uma boa imagem dos nossos corpos através do consumo de bens e serviços cosmo-estéticos; sobre a fetichização, a objetificação e a exploração sexual do corpo das mulheres; sobre a cultura do estupro como parte da cultura do patriarcado; etc.
Por fim, consideramos o feminismo emancipatório. Pois o feminismo nos ajuda a emudecer aquela voz irritante dentro das nossas cabeças que insiste em dizer o que é certo ou errado a partir da visão do machismo e do patriarcado. O feminismo nos mostra que não vivemos, amamos, consumimos ou decidimos no vácuo, mas que as nossas inclinações em relação a todas essas coisas são, em larga medida, devedoras dos impulsos que recebemos das nossas famílias e da sociedade desde o nascimento. E que em muitos aspectos, apesar da dificuldade implicada nesse esforço, é preciso romper com essa influência para que possamos não apenas nos sentir, mas sermos, efetivamente, livres.
No início desse texto eu disse que resolvi escrevê-lo depois de ler um artigo que tinha feito com que eu parasse para pensar sobre a importância do feminismo. Pois bem, a autora do artigo que me inspirou contava que a crítica feminista nos fornece ferramentas para: (i) analisar aspectos da nossa realidade que poderiam passar, de outro modo, desapercebidos; (ii) digerir e resistir às manifestações culturais do machismo e do patriarcado (e também do racismo, da homo e da lesbofobia), além de nos mostrar o que fazer nos casos de abusos; (iii) compreender como a cultura influencia o nosso comportamento; e (iv) apontar vias (às vezes avenidas inteiras!) para a mudança social.
A emancipação é essa afirmação individual e coletiva das subjetividades como livres e portadoras de direitos. A emancipação está na ideia radical de mulheres são gente! Ela não vem da rejeição da sociedade, nem da ignorância do que nela possa se afirmar como regra ou padrão, mas passa por uma inserção crítica no mundo, ou seja, pelo exercício cotidiano no sentido de perceber a opressão/dominação sem se deixar paralisar por ela. Emancipação é pensar e agir sobre aquilo que nos sufoca e nos impede de decidir sobre as nossas próprias vidas, rompendo com essa camisa de força.
Por isso (e para isso), a organização das mulheres é fundamental. Se uma andorinha sozinha não faz verão, imagina a revolução social! O bonito do movimento feminista é ver como a transformação individual, de cada uma de nós, se opera através de uma construção coletiva, no contato com outras mulheres, com a riqueza e com a diversidade de histórias que todas nós trazemos. É como se lançássemos uma pedrinha no rio, e ela irradiasse a onda da transformação social, feminista, para todos os lados. Todas nós pudemos viver essa experiência no Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, em agosto. Vimos o quão importante é nos apoiarmos mutuamente nesse processo, em cada estado, mas também no país inteiro e, até, internacionalmente.
O feminismo é, portanto, uma postura política de transformação radical das sociedades porque ele forja um novo lugar para o pensamento, porque ele impõe o deslocamento das nossas concepções de mundo ordinárias e porque, dessa forma, ele é (e deve ser) uma perspectiva inteiramente nova sobre como enxergamos a realidade e sobre o que queremos dela; em outras palavras, sobre como queremos viver. O feminismo é para mudar a vida das mulheres, e com a vida das mulheres, a vida de toda a sociedade! O feminismo é hoje o principal desafiante de toda uma tradição de pensamento que, no Ocidente, se forjou modernamente a partir do iluminismo europeu. Um pensamento cuja definição de razão é, a um só tempo, categórica e prescritiva, que, portanto, nega qualquer forma de razão alternativa a ela como menor ou irracional, impondo-se, por isso, como a única verdade possível, além de se fundar sobre uma base falocêntrica, racista, colonialista e etnocêntrica. Isso impõe desafios, evidentemente. Mas não fugiremos deles.
Continuaremos em marcha porque entendemos que a política não é só consenso, mas é, sim, essencialmente polifônica; que ela busca o comum na diferença e através do dissenso, negociando-o a partir das posições políticas anunciadas; porque, para nós, a democracia se constrói justamente com base no caos multitudinário, descentralizado e orgânico, que reflete a vida no que ela tem de melhor e no que a faz valer a pena, aquilo amplia o som da fúria, mas também sabe acolher o apaziguar da tempestade; e porque nós, mulheres, jamais fugimos da luta. Porque mulheres são, antes de tudo, fortes!
* Tatiana Oliveira é militante da Marcha Mundial das Mulheres do Rio de Janeiro, do núcleo feminista Rosa dos Ventos, e doutoranda em Ciência Política pelo IESP-UERJ.
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