Combater o conservadorismo dos discursos e reafirmar a autonomia econômica das mulheres

Clarisse Goulart*

No último domingo, uma grande reportagem foi feita pelo principal jornal local (Belo Horizonte) sobre a história de mulheres com alta escolaridade, que decidiram abandonar suas carreiras e se dedicar, em tempo integral, ao cuidado dos filhos e da casa. A matéria enaltecia a coragem dessas mulheres e empregava o termo “revolução feminina” para caracterizar o movimento de volta ao lar. Matérias, debates e discursos como esse têm sido amplamente veiculados: ora focando a satisfação pessoal e alívio da culpa das mulheres, ora enfatizando como as famílias têm se “degenerado”, já que as mulheres não tem tido tempo de exercer, com todo o esmero, o papel tradicional de mães e esposas. Há ainda outra faceta dessa concepção, uma ideia de escolha – as mulheres, em tal estágio de conquistas, já poderiam escolher ser ou não donas de casa, algo que antes era vivido como uma imposição. Em todos os discursos, comparece uma séria defesa do ideal de feminilidade, resgatando um instinto e uma natureza feminina, que passa então a ser (re)valorizada, num momento em que as conquistas já estariam estabilizadas.

As implicações, intenções e resultados desses discursos não poderiam ser tão nefastos. Primeiramente, ao ser fortemente conservador, reforça a ideia de um rompimento com o feminismo, indicando que o momento atual teria superado os questionamentos em torno da sexualidade e feminilidade, da autonomia econômica e do mundo trabalho. É como se não necessitássemos mais do feminismo, como se as reivindicações e ideias do feminismo tivessem “esticado a corda demais”, como relata a matéria que citei acima.

Desqualificando a radicalidade das propostas feministas e seus impactos na vida pública e privada das mulheres, essas concepções contribuem para uma falsa noção de alcance da igualdade, de que as mulheres já conquistaram tudo, já estão em todos os espaços e, assim, podem, inclusive, escolher se confinar ao mundo privado. É evidente que uma parcela muito significativa das mulheres não esteja implicada nesse dito “dilema” – são chefes de família, não contam com outras pessoas para manter a renda familiar e ocupam, muitas vezes, empregos muito precarizados, ganhando salários muito baixos. No entanto, o conservadorismo atinge todas nós, ao fixar as responsabilidades domésticas e do cuidado como tarefas atribuídas somente às mulheres, ao responsabilizar exclusivamente as mesmas pelas mazelas sociais vivenciadas pelos seus filhos e maridos e ao re-valorizar uma noção completamente contrária à cidadania e à autonomia que é o status de dependentes.

A dita “escolha” de se responsabilizar exclusivamente pela casa significa, na maioria dos casos, não ter nenhum tipo de autonomia econômica, o que está estreitamente associado a uma falta de autonomia pessoal. Reafirmar, portanto, a importância da autonomia econômica das mulheres é, também, desmascarar o conservadorismo. As mulheres não têm que viver com a imposição de um ideal de feminilidade que as aprisione, que dite um padrão aceitável de comportamento e que enalteça as tarefas domésticas como naturais para as mulheres.

Responsabilizar o Estado e os homens pelo trabalho doméstico e de cuidados significa direito ao tempo livre para as mulheres, significa melhores condições de emprego e estudo e mais saúde para mais da metade da população. Também indica a necessidade de rompimento com a divisão liberal entre o espaço público valorizado, que caberia aos homens, e o espaço privado desvalorizado, dito feminino. É preciso combater o conservadorismo e construir processos que acumulem para que as decisões das mulheres sejam soberanas para todas e que nenhuma situação da vida tenha que pesar mais para as mesmas. Portanto, o feminismo continua na ordem do dia!

*Militante da Marcha Mundial das Mulheres de Minas Gerais

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